As muitas faces do populismo

Os quase vinte anos em que Getúlio Vargas foi o presidente do Brasil – chefe “revolucionário”, presidente de um governo “provisório”, presidente constitucional, ditador e presidente eleito – produziram uma ideologia, ou melhor, uma mitologia política em torno desse personagem: o “getulismo”.

Não sei a quantas anda, no imaginário da sociedade brasileira, a eficácia do getulismo. Mas eu desconfio que a lembrança dos cinqüenta anos do seu desaparecimento trágico, neste 24 de agosto, tenham se tornado mais um pretexto para historiadores, jornalistas e cientistas políticos discutirem a “era Vargas” do que uma data com um significado social especial.

Antes de tentarmos compreender quais os principais elementos dessa mitologia, e as razões da sua eficácia histórica, talvez fosse interessante pensar em voz alta (ou em letras redondas) sobre a distância entre 2004 e 1954.

Dois grandes períodos políticos nos separam do populismo “clássico”.

Primeiro, o regime ditatorial-militar. Enquanto durou, e durou bastante (de 1964 a 1985), ele assumiu para si, entre outras, uma tarefa específica: banir os populistas, sepultar o populismo e excomungar seu cortejo de males, isto é, “a demagogia, a desordem e a corrupção”. As ações contra Jango, Brizola e Arraes, e depois contra Juscelino, Jânio e Lacerda, não deixaram dúvidas sobre quem eram, ao lado dos “comunistas”, os inimigos mais importantes. Aqueles que não desapareceram de fato iriam desaparecer da cena política nas décadas seguintes.

Esse não foi um processo nem simples, nem fácil. A sobrevivência política de Brizola (eleito no Rio de Janeiro em 1982) e de Jânio (eleito em São Paulo em 1985) representou um último suspiro, à esquerda e à direita, das lideranças do pré-64. Mas quando essas lideranças ressurgiram, ressurgiram graças a injunções mais conjunturais (e a certas extravagâncias do eleitorado) do que como resultado de práticas políticas e estruturas institucionais (partidos, sindicatos, movimentos sociais) sobreviventes do período anterior.

Na década de noventa (e hoje também), a ruptura com o populismo foi mais explícita e mais eficaz. A mudança da política econômica, de nacionalista e desenvolvimentista para internacionalizante e (neo)liberal, cortou qualquer laço que por acaso ainda existisse entre o passado e o presente. A palavra de ordem da “flexibilização” de direitos trabalhistas, e seu persistente efeito ideológico sobre a conjuntura atual, são um atestado da decadência do populismo como estilo, como política e como ideologia.

Ainda que o getulismo, como mitologia, não se confunda inteiramente com o populismo, como ideologia, sua influência no grande ciclo político que vai de 1930 a 1964 se deve, entre outros fatores, à natureza ambígua da política de Vargas (ao mesmo tempo progressista e conservadora) e ao caráter paradoxal da sua personalidade política (ao mesmo tempo maquiavélico e virtuoso). Mas sem atentar para a complexidade desse período de transição de uma sociedade agroexportadora para uma sociedade urbano-industrial não é possível entender o antigo fascínio das massas e a curiosidade renovada dos intelectuais.

As muitas fases dos governos de Getúlio Vargas deram à sua imagem um sentido, à primeira vista, contraditório. A decantada capacidade de manipulação (das massas) e conciliação (das elites), sua sobrevivência tanto sob um regime político autoritário quanto democrático, o maquiavelismo dos meios em nome da integridade dos fins, e assim por diante, são não apenas as razões das disputas em torno do “verdadeiro” Getúlio Vargas e da sua herança “correta”, mas a razão de ser do getulismo e, portanto, da sua eficácia histórica.

Contudo, o que pode aparecer como ambigüidade não resulta das preferências pessoais do líder, ou da sua indecisão entre estilos opostos. O paradoxo da convivência de extremos na mesma personalidade pública é o resultado objetivo da maneira pela qual se resolveram, nos governos Vargas, três problemas cruciais da sociedade brasileira: a questão da federação, a questão da representação e a questão da dominação.

Esses são três problemas que surgem simultaneamente já na década de 1920, mas cujas soluções têm ritmos próprios (isto é, não são simultâneas) e modos específicos. Daí a variedade de roupas com as quais a personagem se apresenta para o público.

O problema da federação é o problema da distribuição do poder entre as diferentes economias regionais: umas voltadas para o mercado interno, outra voltada para o mercado externo. A Revolução de 1930, e a reação paulista a ela em 1932, vão terminar numa fórmula política que conjugará, de um lado, centralização de funções administrativas e concentração do poder na Presidência da República; de outro, autonomia política, ainda que limitada, às oligarquias estaduais.

O problema da representação é o problema da representação das elites no sistema político nacional. No contexto francamente antiliberal da década de trinta, o cancelamento do registro dos partidos, o fechamento das casas legislativas e a rejeição aos “políticos profissionais” (na verdade, os oligarcas) será a face mais intransigente de um governo que, progressivamente, irá abrindo canais que conduzem a certas arenas no interior do próprio Estado para que as elites econômicas apresentem diretamente a quem decide suas reclamações.

O problema da dominação é o problema da dominação das novas classes que surgem ou aumentam de importância com o avanço da urbanização e da industrialização. O processo de modernização da economia exigirá portanto o equacionamento da questão social. Também aqui há uma estratégia de duas faces. À concessão de direitos sociais (sendo o caso da CLT o fato mais importante a respeito) corresponderá uma repressão severa das atividades políticas autônomas dos trabalhadores. A legislação trabalhista (previdência, salário mínimo, férias remuneradas, etc.) deve ser necessariamente completada pela legislação sindical (o sindicato oficial de Estado). A política de integração e expressão dos interesses econômicos das massas populares urbanas é, ao mesmo tempo, uma política de manipulação e controle dos seus direitos políticos. O que se tira com uma mão para se dar com outra revela um maquiavelismo mais por método que por temperamento.

Ora, à medida que esses mesmos problemas encontram hoje outras soluções, o getulismo não perde apenas a razão de ser. Ele perde sua base real. Portanto, só pode sobreviver como ideologia.

Adriano Nervo Codato é professor de Ciência Política na Universidade Federal do Paraná (UFPR), editor-chefe da Revista de Sociologia e Política (www.scielo.br/rsocp) e coordenador do Núcleo de Pesquisa em Sociologia Política Brasileira da UFPR.

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