Argumento perverso

Que a vida ficou mais cara – para além do que indicam os índices oficiais – no último ano, disso não há dúvidas. No mercado, na escola, na farmácia, no ônibus, no hospital e, inclusive, no cemitério. A liderar a escalada de preços estão aqueles administrados pelo governo ou por ele ditados diretamente. Telefone, luz, transporte, impostos de qualquer natureza, etc. Vai daí que um dependente de qualquer família – seja da extremidade anciã, seja na da vida que ainda se forma – também pesa mais no orçamento doméstico.

Ao ajustar as contas com o leão, todo contribuinte tem direito a fazer deduções. Os dependentes, por exemplo, constituem um caso notório de dedução. Quanto menos deduz as despesas obrigatórias com seus dependentes, mais paga o contribuinte ao governo. E é isso que o governo quis e fez durante anos, mesmo sob a crítica cerrada da oposição liderada pelo PT, hoje no governo pelas mãos do eleitor inconformado com a injustiça. Mas o PT mudou de lado e mudou também de opinião. Agora não quer mais que a tabela – motivo de muitas obstruções e da produção de centenas de discursos de anatematização do governo de então – seja reajustada. Pode?

Até aqui, isso não constitui exatamente uma novidade. Mudanças parecidas foram operadas também em outras questões e sobre esse comportamento mudancista cunhou-se o conceito de que só não muda quem está morto. Quem evolui – embora nem toda mudança seja exatamente uma evolução -, muda. Constitui uma surpresa, entretanto, o argumento que passou a ser usado pelo governo para justificar essa posição “efeagaciana” de não corrigir as tabelas do Imposto de Renda. Pois os sucessores de Everardo Maciel na Receita Federal acham (e o governo, que dúvidas!, também passou a achar) que corrigir a tabela agora seria algo “perverso” do ponto de vista social. Dessa correção – segundo saiu por aí dizendo impunemente o secretário-adjunto da Receita Federal, Ricardo Pinheiro – tiram maior proveito os que mais ganham e isso contraria frontalmente a política do atual governo…

Além disso, considere-se que a correção monetária é algo típico das economias indexadas e, graças a Deus (e à alquimia ou matemágica palaciana) “nossa economia já não padece desse problema há algum tempo. Portanto, a tabela não será corrigida. No máximo seriam realizados alguns “realinhamentos”, mesmo assim se houver folga na arrecadação…

Seria de perguntar ao nobre funcionário da Receita Federal por qual motivo, se tudo está contido como diz, seus colegas realizam operação-padrão exigindo aumentos salariais; por qual razão, igualmente, deputados e senadores não faz muito tempo reajustaram em mais de 50% seus próprios vencimentos; por que sobem as custas judiciais e demais emolumentos que distanciam a Justiça do cidadão; ou, ainda – entre tantas outras perguntas semelhantes – por qual motivo o próprio governo quer prorrogar a vigência da cascateira CPMF ou, ainda, congelar as tabelas do próprio IR?

Compreende-se a preocupação do governo com a tarefa de distribuição de renda. Além de promessa de campanha, é o que precisa ser feito. Compreende-se também que queira encher os cofres para melhor conduzir o argumento da reeleição, naturalmente para mais realizar em prol dos menos favorecidos… também essa é uma causa nobre. Mas o argumento que encapa a nova fase de congelamento das tabelas do IR não pode prosperar por um único motivo (e ele também era usado pela oposição de uma vez, hoje governo): donos de grandes fortunas têm mil subterfúgios para fugir de tabelas e do próprio Imposto de Renda. Quem caminha, sempre, pagando o mico e o cachimbo, é o assalariado ou, em termos genéricos, o trabalhador remediado. E este já está sendo esfolado vivo. É preciso respeito.

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