Arca de Noé

A expressão “Arca de Noé”, no serviço público, vai além do significado bíblico. Denota mais que um “trem da alegria”. Tem a ver com um grande espaço onde entram muitos beneficiados, sempre de carona e sem importar méritos ou critérios, como aconteceu com aquela embarcação da história do grande dilúvio. Pois bem, a história do socorro financeiro da União ao governo de Minas Gerais, em nome de estradas federais administradas pelo Estado, está sendo chamada de “Arca de Noé”. Isto é: no mesmo barco de Minas, podem entrar outros estados, tantos quantos quiserem ou puderem.

Não é à toa que o governo federal ? tanto o de direito, sob o comando de Fernando Henrique Cardoso, quanto o de fato, que atende às orientações de Luiz Inácio Lula da Silva ? tem sido recalcitrante à idéia de atender a reivindicação, ou melhor, a exigência do governador Itamar Franco, atropelado pela falta de dinheiro para pagar o décimo terceiro salário do funcionalismo. Ante ameaças de ir à Justiça e partir para a retaliação política, o governo mineiro (e aqui se deve entender também o eleito, sob a égide de Aécio Neves) reivindica mais de um bilhão de reais. Diz que tem direito em função de gastos com estradas federais nos domínios territoriais do Estado.

A situação política criada com a eleição favorece Minas indiscutivelmente e sua reivindicação coloca tanto FHC quanto Lula num pacau de bico. Se não atende o pedido de Itamar, feito como se fosse uma ordem, cria uma situação que não se sabe onde haverá de terminar; se atende, abre precedentes através dos quais entrarão outros estados, a começar, como se divulgou, por São Paulo. Eis, pois, a “Arca de Noé” sobre águas turbulentas, a representar um rombo já calculado em qualquer coisa superior a nove ou onze bilhões de reais ? coisa que não é desprezível numa época em que os tostões são contabilizados para dar sustentação à gastança estatal, reforçada com aumentos de impostos. Além disso, há casos como o do Paraná, cujo governo regional assumiu estradas federais, privatizando-as e remetendo a conta, através de exagerados pedágios, ao contribuinte.

Mas descobre-se agora que há outras questões relevantes a serem consideradas em nome da boa contabilidade pública: a dívida em cobrança por Itamar (e, na seqüência, pelos demais estados) não tem documentação idônea. E se existe, não está com os governadores, tanto que se afirma em Brasília que, caso Itamar tivesse apresentado documentos como manda o figurino, o debate atual nem sequer teria sido instalado.

Está evidente, pois, que estamos diante de um pretexto ou, melhor, de uma alternativa à impossibilidade política (criada a partir de incisivas declarações de ambos os governos instalados em Brasília) de reabrir negociações com os estados na questão de suas enormes dívidas para com a União ? já roladas e renegociadas à exaustão. Essa “Arca de Noé” não pode acontecer sem a reação vigorosa do contribuinte, chamado a tapar buracos de governantes cuja responsabilidade fiscal é, para dizer o mínimo, duvidosa.

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