Arbitragem e Administração Pública X Ação Civil Pública e Ação Popular

A possibilidade de utilização da arbitragem na solução de litígio em que seja parte a administração pública direta ou indireta tem sido objeto de intensa polêmica jurídica.

Independente do entendimento que vier a prevalecer e sem pretender superar os argumentos das diferentes opiniões doutrinárias existentes sobre a matéria, merece destaque um outro enfoque: é possível a arbitragem requerida com base no contrato, contra órgão ou entidade da administração pública direta ou indireta, nas hipóteses em que é cabível ação popular ou ação civil pública ?

No caso de estar previsto contratualmente o procedimento de arbitragem para dirimir litígio entre a Administração Pública direta ou indireta e contratante particular, e ser cabível ação popular ou ação civil pública com o mesmo objeto ou razão de pedir, qual via processual ostenta condições de produzir decisão revestida da autoridade e eficácia da coisa julgada?

Enquanto a multiplicidade de vias processuais situar-se no plano da conexão – diversas ações populares ou civis públicas conexas correndo perante juízes diferentes que têm a mesma competência territorial – resolve-se o problema através do instituto da prevenção, considerando-se prevento aquele que despachou em primeiro lugar (CPC, art. 106), observada a Lei n.º 4717-65, que em seu artigo 5.º atribui natureza universal ao juízo competente para julgar a ação popular (RSTJ 106/15), circunstância que lhe confere vis atractiva.

No entanto, como veremos, não comporta solução pelo mesmo critério a definição de competência quando houver pretensão à instauração de arbitragem para deslindar litígio cujo objeto permita ajuizamento da ação popular ou da ação civil pública.

A Constituição Federal atribui a todo e qualquer cidadão, conforme dispõe seu art. 5.º, LXXIII, legitimidade para propor ação popular. Por sua vez, a Lei n.º 7347-85 legitima o Ministério Público e a outras entidades lá enumeradas para propositura da ação civil pública. Tanto na ação popular como na ação civil pública é possível ao autor atacar a existência, validade ou eficácia de contrato administrativo, no todo ou em parte, com ressarcimento das perdas e danos dele advindos ao erário. Podem ser atacados pela mesma via, ainda, os atos administrativos, inclusive aqueles que, vinculados ao contrato, forem praticados ao longo do seu prazo, a título de controle da execução das obrigações das partes (medições e suas certificações, declarações de conclusão e recebimento de obras, empenhos, etc….).

Nem o cidadão autor da ação popular, nem o autor da ação civil pública, seja o Ministério Público, seja outra entidade legitimada, estão sujeitos à cláusula de arbitragem. Em relação a eles, o contrato constitui res inter alios e, portanto, não os obriga ou lhes retira direitos. Conseqüentemente, a estipulação de cláusula de arbitragem, em contrato com a administração pública direta ou indireta, não afasta a titularidade e legitimidade do cidadão para a ação popular, ou das entidades legitimadas para a ação civil pública, que têm amparo constitucional específico.

Na medida em que o juízo competente para a ação popular ou ação civil pública é universal e, portanto, exclusivo, como já observado, a apreciação do cabimento e do mérito das referidas ações não lhe podem ser subtraídas.

A ação popular e a ação civil pública, por sua natureza, existem para tutelarem direitos e interesses indisponíveis (Lei 9.307-96, art. 1.º), de modo que o cabimento de uma dessas ações exclui a possibilidade jurídica da arbitragem com a mesma finalidade.

Portanto, ao argumento clássico da indisponibilidade dos direitos e interesses da administração pública – indisponibilidade inegável sempre que para o exame desses direitos e interesses seja cabível uma das ações referidas – soma-se a circunstância de que no pólo ativo da ação popular e da ação civil pública se encontram pessoas ou entidades que não fazem parte do contrato administrativo onde, eventualmente, haja sido pactuada a cláusula de arbitragem e, portanto, a ela não estão sujeitas.

Não é difícil perceber que, a se admitir a prevalência da competência do árbitro sobre a do Judiciário, para dirimir litígio cujos fundamentos ou objeto possam ser julgados em sede de ação popular ou ação civil pública, ficaria a critério do administrador público estabelecer se determinado contrato ou atos administrativos a ele vinculados poderão ou não ser atacados pelas vias processuais enfocadas, bastando-lhe, para obstá-las, incluir no contrato previsão de arbitragem. A Constituição, a Lei da Ação Popular e a Lei da Ação Civil Pública transformar-se-iam em letra morta, derrogadas por mera cláusula contratual.

Assim, a eficácia da cláusula arbitral, em situação jurídica onde é cabível ação popular ou ação civil pública, fica prejudicada, por absoluta impossibilidade jurídica de que o árbitro produza, em tal caso, uma decisão definitiva e vinculante. Isto é, sentença arbitral capaz de formar coisa julgada (Lei n.º 9.307-96, art. 31).

Basta ver que, se proferida sentença arbitral na hipótese aventada, sobre ela prevaleceria a sentença de mérito que julgar ou houver julgado ação popular ou ação civil pública. Faltaria, então, à sentença arbitral o caráter de imutabilidade (CPC, art. 467), sem o qual não se forma a coisa julgada. Ora, produzir sentença arbitral, com força de coisa julgada, substituindo o Judiciário, é a principal finalidade da arbitragem, que perde sua própria razão de ser nas hipóteses em que, a priori, se evidencia ser inatingível o seu maior objetivo.

A impossibilidade de arbitragem sobre direitos indisponíveis, comum a todas as pessoas, como definido em lei; a razoável e lógica percepção de que os direitos e interesses tutelados pela ação popular ou ação civil pública enquadram-se ipso facto nessa categoria; a circunstância de que os autores dessa espécie de ações, não sendo parte no contrato que haja estabelecido a cláusula arbitral, a ela não se sujeitam e o fato da arbitragem ser incapaz de produzir sentença arbitral com força de coisa julgada, nos casos em que é cabível uma das duas ações sob enfoque, permitem concluir que o cabimento de ação popular ou ação civil pública para o deslinde de determinada questão, mesmo na ausência de seu efetivo ajuizamento, exclui por si só, na exata extensão em que couberem, a possibilidade de arbitragem.

Assis Corrêa

é diretor jurídico da Copel.

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