Anencefalia

Ainda há no Brasil de hoje, que se presume caminhe absorvendo os progressos do século XXI, preconceitos e mesmo velhos e carcomidos conceitos que nos atrasam. Existem, inclusive, aqueles que, não aceitando os progressos da ciência e se agarrando a crendices que vêm se provando errôneas, obstaculizam progressos que poderiam levar a expressivos adiantos na medicina, na produção de alimentos e na convivência das naturais diferenças entre os seres humanos. Seriam os casos dos alimentos transgênicos, das inseminações, das clonagens para fins terapêuticos e, já no campo social, os preconceitos de raça e entre sexos, sobejamente provados pela ciência como injustificáveis e causadores de atrasos e injustiças.

No caso dos transgênicos e das clonagens, há que se priorizar o exame de tais questões sob o ponto de vista científico, antes de mais nada. Que se deixe para um segundo debate questões filosóficas ou religiosas, pois a ciência é o instrumento para chegarmos às verdades incontestes, pelo menos no que respeita aos resultados que se aspira e almeja. Não podemos nos esquecer de que, ao longo da história, muito do que as filosofias e as religiões barraram, às vezes por séculos, opondo a determinados progressos posições dogmáticas, a ciência acabou provando os erros e a humanidade aceitando a verdade.

O ministro Marco Aurélio de Mello, do Supremo Tribunal Federal, através de liminar, acaba de liberar a interrupção da gravidez quando houver laudo médico atestando anencefalia do feto. Isto, independentemente de a mulher dispor de ordem judicial para o caso específico. É uma decisão ainda provisória porque liminar, faltando o julgamento final do colegiado, mas já vale para todo o País.

A anencefalia é a ausência de um ou ambos os hemisférios do cérebro do feto. Constatada tal anomalia, a criança não sobreviverá e a gestante, se impedida de realizar a interrupção, tem uma gestação física e psicologicamente dolorosa. E inútil. Já há muito que a ciência constatou que a vida termina quando o cérebro não mais funciona. Antes, pensava-se e, infelizmente, ainda muita gente pensa, que a morte é a parada do coração e não a do cérebro. Este preconceito tem impedido que muitas doações de órgãos sejam feitas e muitas vidas salvas através de transplantes. Os transplantes devem ser feitos tão logo haja parada das funções cerebrais, mesmo que o coração, um músculo bombeador de sangue mecanicamente, se mantenha ainda por algum tempo funcionando. Mecanicamente, o que não comprova vida.

Nos tribunais de primeira instância, tem sido amplamente reconhecido o direito à interrupção da gravidez quando há anencefalia. Para o ministro Marco Aurélio, a interrupção da gravidez, no caso de anencefalia, não é aborto, pois não há chance de vida após o nascimento. Por esta razão, ele considerou um direito constitucional da gestante “submeter-se à operação terapêutica de parto de fetos anencefálicos, a partir de laudo médico atestando a deformidade”.

Veja-se que no caso examinado o pedido foi feito pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde, portanto, por quem entende do problema, sob o ponto de vista científico. Resta ainda a decisão final e, nesse tempo, cabe a quem já se manifesta contra a interrupção desse tipo de gravidez, por motivos científicos, filosóficos ou religiosos, buscar provar que há efetivo aborto e que este é indesejável e proibido pela nossa legislação. Enquanto isto, sigamos o que nos ensina a ciência e que tem a chancela da Justiça.

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