Ambivalência e etnografia das Varas dos Adolescentes Infratores

Com a entrada em funcionamento das Varas dos Adolescentes Infratores enquanto instituição jurídica destinada a julgar as condutas conflitantes com a lei então praticadas por adolescentes atos infracionais, nos termos do art. 103, da Lei Federal n.º 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente), entende-se socialmente desejável a realização de estudo e de pesquisa acerca dos conflitos e das disputas que se dão durante os processos jurídicos, procurando-se, assim, compreender a construção de uma ?idéia? de Justiça sobre os adolescentes infratores a partir mesmo das importantes contribuições da etnografia.

Com isto, alinha-se definitivamente aos ditames internacionais acerca dos direitos humanos destinados especificamente à criança e ao adolescente que, no Brasil, restaram consignados democraticamente nos arts. 227 e 228, da Constituição da República de 1988, por opção política consoante a autodeterminação do povo brasileiro, constituindo-se, assim, em cláusulas pétreas, nos termos do inc. IV, do § 4.º, do art. 60, daquela Carta Magna, por se tratarem de direitos individuais, de cunho fundamental.

A criação das Varas dos Adolescentes Infratores já faz parte das transformações no modo como a Administração Pública entende o adolescente autor de conduta conflitante com a lei. Sob a orientação do Estatuto foram ampliadas as instâncias de participação federal, estadual e municipal que abordam estas questões no Brasil. É uma tendência que acompanha outras legislações internacionais e procura integrar o processo de disseminação global dos chamados ?direitos da criança?(1) para ampliar a noção de cidadania e a participação, da família e da comunidade, nas políticas de atenção aos direitos da criança e do adolescente.

Desse modo, tais direitos têm sido um dos objetos prioritários de debate para o Estado brasileiro. E mais recentemente a discussão pública sobre a redução da idade de maioridade penal, em virtude mesmo dos últimos acontecimentos violentos envolvendo adolescentes. Nas Varas dos Adolescentes Infratores, cotidianamente, são realizadas audiências para a apuração da responsabilização diferenciada dos adolescentes que praticaram condutas em conflito com a lei, evitando-se, com isso, a ilusão social acerca da ?impunidade? dos jovens. As audiências, por isso, constituem-se em espacialidades públicas da palavra e da ação (Arendt, 1997), nas quais para além das resoluções judiciais de casos concretos função estatal enquanto ação legal do Poder Público , certamente, incide todo um sistema simbólico que estabelece diálogos com as noções ainda que jurídicas do que seja criança, adolescente, ?menoridade?, ?punição?, responsabilidade diferenciada, senão, da própria idéia de Justiça.

Entende-se, por isso, que um estudo etnográfico pode muito bem contribuir para o aprofundamento da compreensão dos dispositivos de poder e das posições políticas que estão em jogo nas Varas dos Adolescentes Infratores. Porém, esta proposta transdisciplinar deve metodologicamente se afastar do ?olhar nativo? que representa ?o tribunal como um espaço separado e delimitado em que o conflito se converte em diálogo de peritos e o processo, como um progresso ordenado com vistas à verdade? (Bourdieu, 1998:228), lançando-se para enxergar as intenções, os valores e as disputas de poder que constituem o ?efeito simbólico? do ato jurídico.

E isto é razoavelmente possível com a mudança cultural e ideológica acerca dos novos valores (humanos) que demandam o respeito e a responsabilidade pelo ?outro?, principalmente, diante de uma estruturação social extremamente complexa e desigual. Utilizar a etnografia uma técnica, mas também um método de pesquisa para compreender um fenômeno complexo como o Direito significa promover o encontro entre duas disciplinas que se posicionam em lados opostos no que se refere à dimensão simbólica do poder. Na prática jurídica é estabelecida uma relação imediata entre direito e sociedade aliás, na tradição kantiana a sociedade é algo inconcebível sem o direito , de modo que qualquer conflito social ?relevante?, do ponto de vista do Direito deve ser (des)apropriado por uma ?cultura? jurídica oficial que nos ensina a ?preservar a ordem e fazer justiça? (Berman, 2006:34).

Na prática etnográfica privilegia exatamente o oposto, pois é na diferença que se procura o ?outro?, naquilo que escapa ao ?oficial?, onde o conflito se exacerba, que a pesquisa ou antropológica de viés sociológico constrói o discurso da ?auteridade?. Se a tradição do Direito parte de um modelo geral (Teoria Geral) para pensar a organização social, a etnografia percorre o trajeto inverso e encontra nos modelos particulares aquilo que coloca em xeque sua própria generalização. Promover o diálogo destas duas tradições de pensamento possibilita, entretanto, a emergência de reflexões contextualizadas acerca do funcionamento do Direito; ou seja, do sentido das normas jurídicas, das possibilidades de justiça e da própria ciência em nossas comunidades. Mais do que isso, permite uma compreensão complexa dos fenômenos mais significativos de nossa sociedade, como, por exemplo, a atual discussão acerca da redução da idade de maioridade penal, senão, o recrudescimento de medidas legais que responsabilizem o adolescente, agora, pela vertente jurídico-penal meramente repressivo-punitiva, isto é, sem qualquer preocupação com as futuras gerações.

Pensar as Varas dos Adolescentes Infratores possibilita este duplo movimento: por um lado, discutir as questões relativas à criança e ao adolescente então estabelecidas pela legislação vigente e problematizadas pelo conhecimento jurídico a partir de um instrumento minucioso e elaborado como a etnografia; por outro, compreender, para além da via legal, quais são os dispositivos de efetivação de autoridade e imposição da regra. Não se trata aqui de menosprezar a importância da Lei, mas perceber que o controle também é estabelecido por uma série de outros reguladores sociais que atuam em esferas de poder alternativas àquelas gerenciadas pelo Estado.

A etnografia, assim, para além de evitar o reducionismo jurídico-penal caracteristicamente repressivo punitivo no tratamento de questões sociais que demandam um complexo de políticas públicas, procura, antes do mais, pautar tais temáticas nas agendas sociais e, então, a partir da ampla discussão entre os diversos setores da vida social, estabelecer estratégias metodológicas para implementação das medidas a serem oficialmente adotadas pelo Poder Público.

Aqui, mais de perto, em relação às medidas judiciais aplicadas aos adolescentes autores de condutas conflitantes com a lei, enquanto responsabilidade diferenciada para imposição de limites pessoais e sociais, pois a partir da abordagem etnográfica, isto é, de técnicas estabelecidas pelo conhecimento antropológico (entendido como um saber social), possibilita-se, na verdade, a mais ampla contemplação de questões relativas à condição peculiar da criança e do adolescente como pessoas em desenvolvimento art. 6.º, do Estatuto. A proposição epistêmica da etnografia para além da percepção e interpretação da criança e do adolescente (inclusão), também objetiva (re)construção cultural e ideológica destes novos atores sociais (novas cidadanias) a partir de outros valores inerentes aos direitos humanos.

Considerando que em uma etnografia os objetos são também tomados como sujeitos, investigar os processos de constituição de uma noção de justiça sobre o com adolescentes infratores nos encaminha para uma pesquisa circunscrita espacialmente e simbolicamente, ?ou multi-situada? (Marcus, 1998), no sentido de que se torna o local de encontro de diversos agentes e atores, os quais, por sua vez, conferem significados singulares ao evento. Ora, mas se as pessoas envolvidas num litígio junto à Vara dos Adolescentes Infratores lançam mão de um discurso jurídico para solucionarem seus conflitos, e entendendo que ?natureza? desse discurso é nomear e classificar de acordo com uma interpretação da norma, nada mais ?lógico? do que supor que a ambivalência é o produto normal da linguagem jurídica ainda mais quando concordamos que o Direito atravessa uma crise de legitimação na contemporaneidade.

Geralmente culpamos a língua pela falta de precisão, ou a nós mesmos por seu emprego incorreto, no entanto a ambivalência não é um produto do uso incorreto da linguagem. Contudo, esta indecisão e imprecisão de nossas categorias referem-se antes a um fenômeno específico da linguagem, que sempre ocorre quando os ?instrumentos lingüísticos? se mostram inadequados ou incapazes de descrever a ordem social; trata-se de um ?efeito colateral do projeto moderno de planejar e administrar a existência? (Bauman, 1999:83). No Direito temos experimentado a ambivalência como desordem.

Assim, investigar as noções de criança, adolescente e justiça junto às Varas de Adolescentes Infratores conduz a uma interpretação da Lei no momento de sua aplicação, e, não, diversamente, no calor dos acontecimentos sociais, procurando extrair o significado deste fato jurídico a partir da aplicação de sua Lei. Um movimento que, ao reportar-se à tradição etnográfica, permite dinamizar no trabalho de campo o corpo teórico que sustenta o discurso jurídico. Trata-se de um conhecimento produzido na apreensão dos fenômenos estudados simultaneamente ?de fora? e ?de dentro?, como diria Lévi-Strauss, a partir de uma ?troca intersubjetiva? (Lévi-Strauss, 1996:76), passando, desse modo, a compreender o Direito como um canal de acesso a nossa cultura, ou de algum de seus aspectos culturais específicos.

Nota:

(1) No âmbito internacional, as pessoas que possuem idade inferior a 18 (dezoito) anos são denominadas de crianças, consoante a Convenção Internacional dos Direitos da Criança, de 20 de novembro de 1989.

Fagner Carniel é mestrando em Sociologia pela UFPR.

Mário Luiz Ramidoff é professor das Faculdades Integradas Curitiba. Doutorando em Direito pela UFPR.

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