Além do arco-íris

Há uma oportuna novidade editorial na praça. Por enquanto ela só está disponível nas estantes do excelente Café Cultura, do solerte Mauro Mota, dono da belíssima idéia de abrir um espaço dedicado aos prazeres da arte, da música, da leitura ou da boa conversa, num ambiente acolhedor que já se tornou referência na área central da cidade.

Quanto à novidade, comunicou-me o próprio autor, Wilson Silva, piloto, repórter e escritor dos melhores que ainda temos, dons que tem cultivado ao longo dos anos e que nada mais fazem senão escancarar sua proverbial verve de contador de causos, observador da vida, cronista do cotidiano e arquivista meticuloso daqueles fatos que, aos mortais comuns, sempre passam despercebidos. Não a alguém equipado com alma de poeta, como é o caso.

Dois parágrafos e ainda não declinei o título do livro, como que rodeando o alambrado, no falar campeiro do experimentado matungo Leonel Brizola. Então, lá vai: Manual do conhecimento inútil (Gráfica Moriá, Londrina, 2003), licença que o prefaciador Estelio Feldman se encarrega de colocar no devido lugar, ao garantir que nada poderia figurar como inútil numa seqüência de textos tão harmônicos entre si e que se sustentam pelo fio tecedor encerado pela ironia sarcástica mas sem maldade esta é a marca registrada de Wilson que como bom piloto em tempos idos, vai levando o leitor a compreender os achaques desta época estuprada pela ignorância.

“Escreva livros”, disse-me Wilson com propriedade, pois não é possível imaginar que depois de tantos anos neste ofício diário, pelo menos um não possa ser extraído de dentro da memória acumulada de gente, fatos e coisas. O homem tem inteira razão, pois já sacou de sua imensa bagagem intelectual vários livros que andam espalhados por aí alegrando, fazendo rir e chorar ou… juntando poeira e traças num canto qualquer.

A trajetória existencial de Wilson é um mosaico. Foi cobrador de ônibus, aprendiz de mecânico, tipógrafo e revisor de jornal. Graças a uma bolsa de estudos aprendeu a pilotar no aeroclube de Sorocaba, SP, daí nascendo uma das paixões que arrastou pela vida. Numa das mais belas páginas do livro em questão, ele confessa que “maduro, ainda tenho pelo avião um amor adolescente”. Não sei se o Saint-Exupery, aquele rapaz francês de quem vocês já ouviram falar, que também foi piloto e escritor, teria inspiração para esculpir uma frase assim…

O manual composto por Wilson Silva, em alguns momentos, alcança como num vôo com destino certo (ou não?), o máximo do politicamente incorreto. O cronista é desabrido em suas considerações sobre mulheres, amantes e sogras, enfim, sobre o que denomina sabiamente de poder doméstico. Mas não é com o bisturi que o hábil escrevinhador sai a espetear furúnculos e quistos inflamados. A imagem mais adequada aqui seria o manche de um Bonanza, que o próprio diz aprendeu a manejar com toques suaves de mãe ao segurar o bebê nos braços.

Bonito que só, mesmo quando o escritor cede à tentação da escatologia, do chulo ou da aparente maledicência com que vai alvejando tudo e todos, embora o humor, a sátira e a irreverência sejam suas únicas e inocentes ferramentas. Mesmo sarcástico, Wilson não comete injustiças. Se precisa ser picante, é apenas para fazer rir. Ele é um cara capaz de declarar que não se deve dar dinheiro a pobres porque, afinal, eles gastam tudo!

Wilson é um bom discípulo de Aparício Torelly, o Barão de Itararé, proprietário e único redator do jornal A manha, editado no Rio de Janeiro até que a ditadura Vargas o empastelou. Aliás, aí deverá estar a matriz do pseudônimo que ele próprio usou durante muitos anos Marquês de Araçoiaba ao assinar a saudosa coluna Atrás do toco, que dentre os inúmeros jornais que a hospedaram, para usar um termo contemporâneo, teve este que você agora tem nas mãos.

A fidelidade ao mestre obrigou-o a buscar numa das máximas do afamado blefador gaúcho, o pensamento que norteia (isto também é cacoete de piloto) sua característica de escrever: “Senso de humor é o sentimento que faz você rir daquilo que o deixaria louco de raiva se acontecesse com você”. Escatologia à parte, quem sabe daqui a pouco você estará na casa da sogra para saborear “aquela” macarronada dominical, fique com esta: “Comemoro meus aniversários visitando asilos. Puxa, que cara bondoso, cristão solidário! Que nada! É que adoro soprar velhinhas”.

Visto pelo autor o livro não é de auto-ajuda, “desses que espertinhos escrevem e otários compram”. Ele é feito de “continhos, crônicas, croniquetas, alguma literatice, memórias, lembranças e citações, causos e passagens de uma vida curiosa, brincalhona e bem-humorada que foi a minha vida de piloto e jornalista”. Pilotar aviões e escrever, quem diria, uma química fina perfeitamente viável aqui protagonizada em grau máximo.

Um exemplo foi o vôo de misericórdia realizado em 1957, num táxi aéreo da Reta, entre Londrina e Campo Grande. A bordo mãe e filho pequeno, ambos portadores do pênfigo foliáceo, o assustador fogo selvagem. Nenhum piloto topou a parada, mas lá estava o Wilson Silva que embicou o Bonanza na direção oeste, sem antes pedir a um amigo médico uma daquelas roupas especiais para cirurgias. Em Campo Grande esperava-o a ambulância do hospital adventista, o único que atendia portadores da terrível enfermidade. Os enfermeiros riram da roupa que o piloto usava.

O faro do repórter funcionou e Wilson foi conhecer as instalações do hospital, onde lhe mostraram a pomada escura usada para suavizar o ardume da pele dos doentes, uma receita de índios, explicaram. Anos depois, Wilson lembra o fato que mais o impressionara na ocasião, os servidores do hospital: “O que levava aqueles homens e mulheres a darem de si para os doentes num ambiente de risco?”.

A carreira do jornalista chegou ao fim diante da melancólica conclusão de que letra de forma não muda nada. “O exercício do jornalismo dá uma certa sensação de poder e isto faz com que ele (o jornalista) passe anos e anos pensando que o tem. A força do jornalista tem a mesma espessura da folha de papel onde o jornal que escreve é impresso”. Uma impressiva lição aos que chegam agora a essa profissão maldita, mas ao mesmo tempo, fascinante.

É mais que provável que o profissional com tantos anos de experiência esteja repassando num único parágrafo, dentre os miríades que escreveu, toda a gama da frustração que resta aos crédulos e bem-intencionados. Mas o faz com a galhardia de alguém que não guarda mágoas e ressentimentos, ainda vendo motivos para a troça: “Em resumo, você é um velho. Feito de saudades, memórias, artrites e pigarro. Está fechando o ciclo da vida. Fatalize-se e aceite. Você está no bico do corvo e passou a torcer pelo Íbis, de Pernambuco. Agora, filia-se ao PSDB, por uns tempos, de olho no PMDB”.

Num dia longínquo, voando entre as nuvens e o céu esplendidamente azul, antes de trocar o manche pela máquina de escrever, Wilson contemplou o arco-íris, um círculo perfeito, fantasia cromática que surge no espaço para encantamento do piloto e munus do pensador. A lembrança reaviva-lhe depois de tantos anos e tantas aventuras a suavidade da poesia, que não morre: “Penso que o homem tem o direito de sonhar. Mas, também sei que nenhum sonho poderá ir além do arco-íris”.

Ivan Schmidt

é jornalista e escritor.

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