Ainda a hipertrofiada Ação Civil Pública

Recentemente, alinhei breves anotações contrárias ao imperialismo processual da ação civil pública (“O Estado do Paraná” de 13/9/03). Seu ímpeto invasor do território delimitado à ação popular, mereceu destacado realce. As ressalvas opostas a esse esbulho processual repousam no direito do cidadão ao “due process of law (art. 5.º, LIV, CF/88).

Uma delas concerne ao exato significado jurídico da expressão “patrimônio público”, no contexto da Carta Magna, e de seus desdobramentos forenses. Lá foi sublinhado que, ao reiterar a natureza supra legal da ação popular, o art. 129, II, da CF/88, atribuiu ao Ministério Público a função de instaurar a ação civil pública com o escopo de proteger o patrimônio público e social. Quando ligou ambas as espécies patrimoniais pela conjunção aditiva e, posta entre o público e o social, enfatizou a idéia de que o vocábulo público concerne ao patrimônio do público, isto é, aos bens de livre fruição por todos os cidadãos, e não ao patrimônio estatal, porque este sujeita-se às regras do Direito Administrativo.

Entrementes, em melhor leitura da Constituição, nela colhi poderoso reforço àquela exegese, que vale a pena aditar ao tema.

De fato, a CF/88 não apenas manteve a ação popular, como também lhe especificou as finalidades em “numerus clausus” (art. 5.º, LXXIII). Nesse rol, figura aquela tendente a anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe. A alternativa ou atua, nesse período, como determinante traço de separação das duas categorias. Obviamente, se podem ser apartadas, é porque são diferentes. Destarte, impõe-se deduzir que, à luz de interpretação sistemática da Magna Carta, patrimônio público não é o mesmo que patrimônio de pessoa estatal.

Comparando-se as duas proposições constitucionais, em que figuram a expressão patrimônio público – aquela atinente às incumbências do Ministério Público (art. 129, III) e esta como objeto da ação popular (art. 5.º, LXXIII) – despontam conceitualmente distinguidos, de um lado, o patrimônio do público, ou da sociedade, e, de outro, o patrimônio da pessoa jurídica de direito público.

De conseguinte, é na autoridade da Constituição da República que se afirma a competência exclusiva da ação popular para promover a defesa do patrimônio dos entes estatais, contra atos lesivos praticados por seus gestores.

À ação civil pública pertine à defesa do patrimônio do público e do patrimônio social, bens esses igualmente defensáveis por meio da ação popular, repita-se, acaso malferidos por ato de gestor público. Desclassifica-se, desde logo, eventual contra-argumento escorado em disposições legais, sabido que a Magna Carta não se interpreta a partir da lei.

De novo, cumpre lastimar o consagrado simplismo reducionista dos peculiares traços distintivos dos instrumentos processuais, claramente individualizados pela Constituição, reducionismo que profana a garantia do devido processo legal.

Equiparar patrimônio público com patrimônio estatal é tão errôneo quanto não distinguir, por exemplo, entre ato ofícial e ato de ofício. Os institutos jurídicos, ao longo do tempo, são laboriosamente esculpidos pela análise e crítica dos doutrinadores. Tanto quanto o escultor, eles cinzelam detalhes na obra cuja valoração exige um mínio de sensibilidade e respeito por parte do observador comum. Do iniciado, a exigência eleva-se à escala máxima. Assim, também, dos especialistas em Direito, que tais são juizes, promotores e advogados, reclama-se elevado teor de reverência, inclusive às mais sutis diferenças inerentes à cada instituto ou categoria jurídica.

Outrossim, no artigo ora aditado, dissenti da outorga, sem mais, da eficácia plena à regra programática da moralidade administrativa, inclusa nos objetivos da ação popular pela Emenda Revisional n.º 4 à Constituição Nacional.

Após publicado, recordei a hesitação confessada por José Afonso da Silva, ante a aplicabilidade autônoma desse apêndice constitucional. E, agora, trago-a como aval daquela discordância.

Observa o ilustre jurista: “Se se exigir também o vício de ilegalidade, então não haverá dificuldade alguma para a apreciação do ato imoral, porque, em verdade, somente se considerará ocorrida a imoralidade administrativa no caso de ilegalidade. Mas isso nos parece liquidar com a intenção do legislador constituinte [?] de contemplar a moralidade como objeto de proteção desse remédio. Por outro lado, pode-se pensar na dificuldade que será desfazer um ato, produzido conforme a lei, sob o fundamento de vício de imoralidade”. (“Curso de Direito Constitucional Positivo”, Malheiros, 10.ª ed. p. 440).

Ao vacilante José Afonso da Silva contraponho o determinado José Afonso da Silva. Este manifesta o receio de o Judiciário transformar-se em Tribunal de Ética, como guarda da moralidade pública, sem controle, prática essa capaz de gerar uma nova forma de ética oficial, sob um Estado ético adverso à democracia. (cf. “Perspectivas do Direito Público” in “Estudos em Homenagem a Miguel Seabra Fagundes”, Edit. Del Rey, 1995, p. 147, apud “Improbidade Administrativa – Questões Polêmicas e Atuais”, Autores Diversos, Malheiros, 2001, p. 22 e 23).

Reginaldo Fanchin

é membro do Instituto dos Advogados do Paraná.

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