Advogado pode examinar qualquer inquérito policial

O inquérito policial, elaborado pela Polícia Judiciária para a apuração de crimes e suas respectivas autorias, diferentemente do que ocorre com o processo penal, tem caráter inquisitivo e sigiloso (CPP, art. 20). Mas esse sigilo, evidentemente, não é absoluto. Ele não vale para o juiz do caso, para o Promotor que nele atua nem para os advogados em geral. Qualquer advogado, por sinal, pode examinar os autos de um inquérito policial. É direito assegurado pelo Estatuto da Advocacia (Lei 8.906/94, art. 7.º, incisos XIII a XV). Aliás, para isso, nem sequer necessita, em princípio, de procuração.

Com a onda de violência que assola nosso país, entretanto, todos os direitos dos suspeitos, indiciados e acusados vêm sendo restringidos pelos legisladores e alguns setores do judiciário. Sempre que um suspeito ou acusado é enfocado como inimigo e não como cidadão dotado de direitos e garantias fundamentais (nesse sentido, assumindo claramente a postura do inimigo cf. JAKOBS, em Derecho penal del enemigo, JAKOBS-CANCIO MELIÁ, Madrid: Thomson-Civitas, 2003), a tendência é a adoção de medidas de “guerra” ou de “exceção”.

A normalidade constitucional acaba sendo violada, para se atender reclamos populares e midiáticos de endurecimento penal (punitivismo). O culpado tem que morrer como inimigo, não como cidadão (Rousseau). Todo delinqüente é um inimigo (Fichte): ou convive comigo na comunidade-legal ou perde a vizinhança (isto é, deve ir para o cárcere) (Kant).

Na esteira dessa tendência punitivista, tentou-se fazer preponderar o entendimento de que o advogado, em alguns casos, não poderia ter acesso aos autos do inquérito policial. O STF, em decisão importante, recolocou o tema no seu devido lugar.

A Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal, em decisão unânime, de 10.08.04, determinou que a proibição de vista integral dos autos de inquérito viola os direitos do investigado. O voto condutor da decisão, tomada no julgamento de um Habeas Corpus (HC 82.534), é do ministro Sepúlveda Pertence.

A defesa do acusado, levada a efeito pelo eminente advogado Alberto Toron, havia tentado, sem sucesso, obter o direito de acesso aos autos de inquérito em trâmite no departamento de Polícia Federal em Foz do Iguaçu (PR). O pedido foi negado pela primeira e segunda instâncias, bem como pelo Superior Tribunal Justiça (STJ).

No Supremo, alegou-se que impedir o advogado de ter acesso aos autos do inquérito e a cópias reprográficas viola os direitos constitucionais da ampla defesa do réu e a prerrogativa profissional da advocacia. Ao deferir o Habeas Corpus, o ministro Sepúlveda Pertence apontou a prerrogativa do advogado de acesso aos autos, regulada pelo Estatuto da Advocacia (artigo 7.º, inciso XIV, Lei 8.906/94).

Lá se diz que é direito do advogado examinar, em qualquer repartição policial, mesmo sem procuração, autos de flagrante e de inquérito, findos ou em andamento, ainda que conclusos à autoridade, podendo a defesa do acusado copiar peças e fazer anotações.

O ministro Pertence concluiu seu voto sublinhando que “ao advogado do indiciado em inquérito policial, titular do direito de acesso aos autos respectivos – que, na verdade, é prerrogativa de seu mister profissional em favor das garantias do constituinte -, não é oponível o sigilo que se imponha ao procedimento”.

Argumentou, arrematando, que o sigilo decretado no inquérito pode justificar apenas que o advogado apresente procuração do acusado provando que o está defendendo. Assim, o ministro-relator deferiu o Habeas Corpus para que a defesa consulte os autos do inquérito policial e obtenha as cópias que interessar, antes da data de inquirição do investigado.

A colenda Corte Suprema, cumprindo seu papel honroso de defensora da supremacia constitucional, não tem deixado de proclamar que o Direito penal vigente no Brasil é o do cidadão, não o do inimigo. Que a coragem e a inteligência continuem iluminando essa denodada Casa de Justiça!

Luiz Flávio Gomes

é doutor em Direito penal pela Faculdade de Direito da Universidade Complutense de Madri, mestre em Direito penal pela USP, secretário-geral do IPAN, Consultor e Parecerista e Diretor-Presidente da TV Educativa IELF (1.ª TV Jurídica da América Latina com cursos ao vivo em SP e transmissão em tempo real para todo país –
www.ielf.com.br).

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