A verdade cruel do espelho

Andei lendo ao longo de 2003 alguns livros bons e maus e, uns poucos que coloquei sob a rubrica de excelentes, como No bosque do espelho (Cia das Letras, 2000), primorosa seleção de ensaios literários do argentino naturalizado canadense Alberto Manguel, que durante alguns anos antes de seu exílio voluntário na Europa foi secretário de Jorge Luis Borges. Excelentes também são os romances portugueses O manual dos inquisidores e Os nós e os laços, dos Antónios Lobo Antunes e Alçada Baptista, respectivamente, assim como Morte em Veneza, de Thomas Mann, e As forças estranhas, de Leopoldo Lugones, segundo meu conhecimento o primeiro livro desse autor argentino um dos que fizeram a cabeça de Borges ? publicado no Brasil.

A fruição trazida pela leitura dos textos de Manguel, Barthes estaria de pleno acordo, é um prêmio àqueles que apreciam a erudição de uma inteligência cuidadosamente alimentada nas fontes da melhor literatura produzida em diferentes culturas em séculos de história. De resto, uma percepção já plasmada por leitores brasileiros desde o lançamento de Uma história da leitura (1997).

Manguel é um leitor experimentado que começou sua relação com o mundo dos livros aos oito ou nove anos, ao ganhar um exemplar de Alice no país das maravilhas&Através do espelho, que aliás confessa não ter entendido bem na primeira leitura. Em compensação, os ensaios escolhidos para figurar nesse livro alinhavado pela perspicácia instigante de Lewis Carrol pronunciada pelos personagens imortais que criou, dão-nos uma aula magna de sabedoria sem afetação e objetividade de pensamento transcritos com o fino lavor do artista que ama seu ofício.

Inclusive, ao tratar de escritores fracassados, aos quais oferece a expiação de que “a falta de talento não é uma ofensa criminal, e haverá sempre livros mal escritos para testar nossa caridade”. Manguel também nos faz o favor de informar: “E não custa lembrar que cada vez que escolhemos um livro para ler na cama, estamos também escolhendo nosso caminho pelas insinuações do Céu e as promessas do Inferno”.

Bem a propósito, cumpre reconhecer que Manguel não se prende aos temas literários que domina como poucos mas incursiona também com propriedade na política, sobretudo ele que nos tempos de jovem estudante em Buenos Aires convertera-se em definitivo à causa da igualdade entre os homens. Como tantos outros de sua geração, a alternativa foi sair de um país garroteado por sanguinária ditadura entre 1973 e 1982, período em que cerca de 30 mil pessoas foram mortas. O ensaísta lembra que o então presidente Carlos Menem, desde a eleição em 1989, tentava conceder perdão geral à maioria dos militares envolvidos em violações de direitos humanos, o que finalmente aconteceu a 6 de outubro daquele ano. Um ano depois Menem concedeu anistia geral. Toda essa questão rumorosa está sendo revista atualmente pela Justiça, com empenho pessoal do presidente Néstor Kirchner.

A situação complicou-se para o sistema legal do país, em 1995, com as confissões de Adolfo Francisco Scilingo e Victor Armando Ibañez, militares envolvidos até a raiz dos cabelos em torturas e crimes cometidos durante o que se chamou de “guerra suja”. Encurralados, já em1977 os principais chefes militares haviam contratado a agência de relações públicas, Burson-Marsteller, uma das maiores dos Estados Unidos, para planejar a estratégia das respostas às acusações e denúncias que pipocavam no exterior. Manguel diz que a agência sugeriu que os militares apelassem para a “reprodução de comentários editoriais positivos de escritores de linha conservadora e moderada”.

Pois em 1995, pouco depois da confissão dos torturadores, um artigo assinado por Mario Vargas Llosa, o afamado romancista peruano, apareceu no jornal espanhol El País, sob o título “Brincando com fogo”. Um dos argumentos era que “por mais horríveis que fossem as revelações, elas não eram novidade para ninguém, apenas a confirmação de uma verdade atroz e nauseabunda para qualquer consciência semimoral”. Seria maravilhoso, escrevia ainda, “se todos os responsáveis por essas crueldades incríveis fossem levados aos tribunais e punidos”, mesmo achando que a tarefa era impossível “porque a responsabilidade vai muito além da esfera militar e implica um vasto espectro da sociedade argentina, inclusive um bom número daqueles que hoje protestam, condenando retrospectivamente a violência para a qual eles também, de uma forma ou outra, contribuíram”.

Para Alberto Manguel, a Burson-Marsteller não poderia ter conseguido publicista mais eficiente para sua causa, cujo poder retórico do falso pesar e do raciocínio blandicioso facilitou-lhe formular a cruel sutileza de dar a entender que a justiça clamada pelas Mães da Plaza de Mayo, por exemplo, é desejável porém utópica. O magnífico ensaio “Os espiões de Deus” prossegue: “Aparentemente, quem busca justiça não é movido pela necessidade de justiça, pelo anseio de que os erros sejam reconhecidos oficialmente, mas por uma ânsia de vingança ou, ainda pior, por puro rancor. Os 30 mil desaparecidos não devem ser lamentados: eram desordeiros que começaram tudo”.

No mesmo livro encontramos outro ensaio dedicado a Vargas Llosa, no qual Manguel expõe uma divergência flagrante entre a escrita ficcional e as posições políticas declaradas. “Era como se, qual um fotógrafo cego, ele não visse a realidade humana que suas lentes tinham captado de maneira tão vigorosa”. O romancista Vargas Llosa, descreve o ensaio, definiu a si e a seus colegas como “descontentes profissionais, perturbadores conscientes ou inconscientes da sociedade, rebeldes com uma causa, os revolucionários impenitentes de nosso mundo”. Seu lado político, entretanto, levara-o a desnudar-se como anti-revolucionário, discípulo do thatcherismo, defensor da vergonhosa anistia de Menem aos responsáveis pelo desaparecimento de milhares de civis durante a ditadura militar, crente na modernização do Peru, que só seria possível a seu ver “com o sacrifício das culturas indígenas”.

Felizmente houve respostas corajosas às posições de Vargas Llosa, e uma delas veio do inglês Ronald Wright num artigo publicado na Harper?s, que mesmo ao fazer ironia, foi absolutamente realista: “Trata-se evidentemente do sacrifício que muitos peruanos brancos estão ansiosos por executar desde que o primeiro deles desembarcou com Pizarro”. O escritor argentino Juan José Saer também questionou o preconceituoso artigo de Vargas Llosa republicado no Le Monde de 18 de maio de 1995, uma semana depois no mesmo jornal, observando que os argumentos utilizados pelo autor de Conversas na catedral coincidem, um a um, com os próprios líderes militares que sustentavam que a tática oficial de assassinatos e tortura não fora escolha deles, mas daqueles que os provocaram e os forçaram a empregar “medidas extremas”.

Saer, que também viu-se compelido a abandonar a pátria para continuar vivo, enfatizou que a noção de “responsabilidade coletiva” poderia colocar o próprio Vargas Llosa em posição delicada, “pois numa época em que intelectuais argentinos estavam sendo torturados ou forçados a se exilar o romancista peruano continuou a publicar na imprensa oficial argentina”.

Manguel fez uma autêntica vivissecção dos argumentos de Vargas Llosa a fim de dar ao público subsídios para discutir a questão por outro prisma. Uma de suas conclusões sustenta que o civil que expressa objeção às ações do governo não é culpado de nenhum crime. Para aclarar a afirmação que certamente chocaria os menos politizadas, lembrou o relatório da Comissão Nacional sobre Pessoas Desaparecidas, liderada pelo romancista Ernesto Sábato, concluído em setembro de 1984 e transformado no livro Nunca más. Entre outras coisas, o documento constata que entre as vítimas da ditadura estavam pessoas que jamais tiveram ligação com organizações políticas, muitos “porque eram parentes, amigos ou tinham seus nomes na caderneta de endereços de alguém considerado subversivo”.

Escreveu também Manguel que nenhum governo pode reproduzir os métodos de seus criminosos, reagindo na mesma moeda ao que possa considerar um ato contra as leis da nação: “Não pode ser orientado por um sentimento individual de justiça, por vingança, cobiça ou mesmo moralidade. Deve manter esses atos individuais de seus cidadãos dentro dos parâmetros estabelecidos pela constituição do país. Deve obrigar o cumprimento da lei com o uso da lei e dentro da letra da lei. Fora da lei, um governo não é mais governo, mas um poder usurpado, e como tal deve ser julgado”.

Manguel vai além ao dizer que “perdão é prerrogativa da vítima, não um direito do torturador, e isso o governo Menem e seus defensores, tais como Vargas Llosa, parece que esqueceram”. Kirchner, bem como o Poder Judiciário, estão trabalhando firmemente para reverter essa retórica profundamente iníqua.

É possível que a tentativa de justificar o injustificável feita pelo escritor peruano em relação aos crimes cometidos pela ditadura no país vizinho, tenha contribuído para o fracasso de seus últimos romances. São vozes autorizadas como a do próprio Alberto Manguel que levantam a suspeita. Aliás, sem forçar a mão, ele ensina que “somos o que lemos, mas somos igualmente o que não lemos. O que nós, como sociedade, deixamos nas estantes nos define tanto quanto os livros que devoramos”. Muito apropriado para se compreender o fenômeno de como alguns escritores, com inteira justiça, passam a ser ignorados pela massa de leitores.

No que toca a este obscuro rabiscador de arrabalde, uma explicação é necessária caso venha a ser julgado pelo que tem esquecido nas estantes. Quanto a Mario Vargas Llosa nutro apatia racional deveras antiga, que somente agora percebo, assim como tenho mantido obsequiosa distância de Proust, Joyce, Céline e Stefan Zweig, entre outros, posto que todos sejam inquestionavelmente assinalados pela aura dos gênios. Do autor de A guerra do fim do mundo, que muitos consideram romance magnífico sobre o episódio de Canudos possuo esse solitário volume, no entanto, jamais aberto. Desde sempre, como diriam os estultos, foi uma opção de não ler e não gostar, pela qual assumo inteira responsabilidade.

Ivan Schmidt

é jornalista e escritor

Grupos de WhatsApp da Tribuna
Receba Notícias no seu WhatsApp!
Receba as notícias do seu bairro e do seu time pelo WhatsApp.
Participe dos Grupos da Tribuna
Voltar ao topo
O conteúdo do comentário é de responsabilidade do autor da mensagem. Ao comentar na Tribuna você aceita automaticamente as Política de Privacidade e Termos de Uso da Tribuna e da Plataforma Facebook. Os usuários também podem denunciar comentários que desrespeitem os termos de uso usando as ferramentas da plataforma Facebook.