A velha França de guerra

Durante a semana, o Congresso e os jornais americanos fiéis ao establishment se empenharam em classificar os franceses com os mais violentos adjetivos. Entre eles, covardes, ingratos, pretensiosos, venais, anti-semitas, antiamericanos, ultrapassados, país de terceira categoria. O New York Times pediu que à ONU tirasse a França do Conselho de Segurança, para colocar um outro país, no caso a Índia. A raiva americana contra a França não fica nisso: um deputado propôs não comprar queijos e vinhos franceses vendidos no país e estudantes de Washington foram convocados a protestar diante da embaixada francesa.

Até parece que os Estados Unidos estão para invadir a França. Mas a razão do ódio é a oposição francesa contra a guerra no Iraque. A França mostra independência em política externa sob Jacques Chirac, entretanto, no caso ele não faz nada mais que seguir os franceses, já que 80 por cento do país são contra o conflito. Bush está quase só e não é chegado a sutilezas. A guerra não é unânime nem nos EUA. Atores, atrizes, diretores e escritores como Danny Glover, Dustin Hoffman, Sean Penn, Robert Redford, Jane Fonda, Kim Basinger, Robert Altman, Spike Lee, Oliver Stone, Arthur Miller, Gore Vidal, Alice Walker, até Madonna, são publicamente contra. E no resto do mundo, ainda mais. Os protestos foram intensos em quase todos os países neste fim de semana. Algo semelhante foi visto somente nos anos 60, na escalada dos ataques no Vietnam. E deu no que deu.

O enrosco com a França ocorre porque os Estados Unidos elegem suas prioridades para o mundo e querem que as nações capatazes as executem sem oposição. O modelo não funciona com perfeição. Se é que funciona. O modelo americano de amizade é a Inglaterra, que joga no lixo o passado de grande potência, para ser um serviçal dos Estados Unidos, o famoso pau para toda obra. Outras nações recusam o mesmo papel e preferem fingir que não ouvem a música. Como a Rússia. A Alemanha certamente acha que ainda é cedo para mostrar as garras e se opor ao poderio americano. O trauma do nazismo é mais assustador para o europeu que as aventuras americanas. Mas a Alemanha faz coro com a França.

A China boceja. Não tem nada a ver com o Iraque e menos com os EUA. Então vem a França e desafia. Justamente a nação que inspirou a democracia americana, onde os americanos desembarcaram na Segunda Guerra e a que presenteou os EUA com o seu símbolo mais conhecido, a Estátua da Liberdade. Porque os franceses não ficam de boca fechada? Talvez, altivez. Ou porque é mais irresistível reagir, mostrar ser possível se opor à arrogância americana. Quem sabe seja esta a natureza da França, procurando sempre, renascer. Este o seu grande charme.

O professor Hélio Jaguaribe diz que há várias formas de hegemonia. Uma delas é através da sedução e do charme, que a França desenvolveu. Tanto que a Inglaterra foi a potência hegemônica nos séculos 18 e 19, mas o mundo se deixava influenciar pela França. É o que ocorre agora. Em um mundo que se submete por medo e não por liderança natural aos Estados Unidos, a França mostra de novo o seu charme. E alimenta o afeto por ela.

Edilson Pereira

(edilsonpereira@pron.com.br) é editor em O Estado.

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