A reforma inacabada

A aprovação final da reforma previdenciária demandou 8 meses, contados da entrega da proposta pelo presidente Lula no Congresso em 30 de abril e a sua publicação no dia 31 de dezembro de 2003. O resultado é a Emenda Constitucional n.º 41, que altera substancialmente o sistema previdenciário dos servidores públicos previsto na Constituição brasileira de 1988. É hora de fazer um balanço pontual da reforma para não se perder de vista que alteramos a Constituição, em detrimento de direitos e expectativas legítimas de toda uma geração de servidores, em prol de um novo modelo de proteção social, supostamente ajustado às necessidades sociais e econômicas do país.

Não se pode ignorar que a reforma previdenciária brasileira começou mal. O desafio atual dos estados nacionais – e o que se esperaria de um governo de esquerda – exigiria construir alternativas para um novo consenso em torno da proteção social, que respondesse às novas restrições econômicas, à nova realidade demográfica e, ainda, às necessidades de cobertura dos novos riscos sociais. Tudo isso sem se afastar dos referenciais do direito à proteção social, compromisso constitucional e moral com o bem-estar, concreção do direito à cidadania. O debate demandaria, portanto, um esforço que fizesse uma contextualização com as grandes transformações econômicas, mas que privilegiasse no debate uma visão nacional, com suas normas e valores. No entanto, o que se viu é que a reforma não conseguiu apresentar uma proposta de reorganização da solidariedade social que não ficasse restrita à dimensão econômica do sistema.

Vimos que a necessidade de uma ampla discussão da proposta, que deveria ter sido ampliada, foi logo dando lugar a um debate estreito. Predominaram a discussão da inviabilidade fiscal do regime, as distorções das grandes aposentadorias, apresentadas muitas vezes com avaliações catastróficas. Os críticos da reforma, por sua vez, se recusaram a aceitar o argumento da real existência do propagado déficit atuarial. Tudo isso embalado pelo cerco feito por setores da mídia às supostas contradições entre a postura do então PT da oposição e o atual PT no governo. Os governadores, atentos aos dividendos que pretendiam amealhar, não esconderam o interesse fiscal da reforma. Assim, o governo cedeu às pressões, desde que salvo o eufemístico “coração da reforma”.

O antigo regime próprio dos servidores foi esfacelado e segmentado por diversas regras, novas e transitórias, que podem ser assim resumidas: a fixação de teto de R$ 2.400,00 para os novos servidores, com direito à previdência complementar; mudança na regra de transição dos atuais servidores, fixando a idade mínima de 55 e 60 anos, para mulher e homem, respectivamente, com a introdução de redutor por ano (3,5% até 2005 e 5% a partir de 2006), por antecipação da aposentadoria; aposentadoria integral para aqueles que implementarem 30/35 anos de contribuições e 60/65 de idade (homem/mulher), além de 20 anos no serviço público, 10 na carreira e 5 no cargo; contribuição de 11% dos inativos, sobre os valores superiores a R$ 1.440,00; cálculo dos benefícios pela média das contribuições; pensão integral até R$ 1.440,00 para os pensionistas da União e R$ 1.200,00 para os pensionistas dos Estados e Municípios e redução de 30% sobre a parcela excedente; fixação de teto para os servidores da União com subteto para os Estados e; finalmente, o abono de permanência de 11% para aqueles que apesar de possuírem direito a aposentadoria, permanecerem no serviço.

Mas o que é sintomático é que a reforma abandonou o principal objetivo que motivou a proposta original: a unificação dos regimes, que tornaria o sistema mais justo e equitativo. Além de deixar de unificar os regimes de previdência – ao prever novas regras para o sistema público para os novos servidores, com critério de transição para os atuais e, em alguns casos, direitos adquiridos – acabou por criar “outros regimes” dentro do regime público. Por ironia, da unificação prometida teremos um mosaico de espécies de “sub-regimes”. Em breve assistiremos as várias “classes” de servidores trabalhando lado a lado numa mesma repartição: servidores novos sujeitos ao teto de R$ 2.400; servidores com direito adquirido à aposentadoria integral; servidores sujeitos à transição da transição entre a reforma de 1998 e a de 2003; e, ainda uma infinidade de situações particulares aplicáveis a cada servidor a depender do seu tempo de contribuição e idade. Enfim, o resultado é um sistema fragmentário, mais complexo e, em alguns aspectos, menos equitativo.

Ao fixar o teto para servidores públicos em pouco mais de 17 mil reais, valor equivalente ao subsídio de Ministro do Supremo, a reforma acabou por produzir um enorme equívoco, pois todo o sistema previdenciário brasileiro ficou vinculado à remuneração dos 11 juízes do Supremo. Mas o grande impacto para os atuais servidores é que terão que trabalhar mais 7 (sete) anos para gozar da aposentadoria nas mesmas condições anteriores, já que houve um acréscimo da idade mínima para as mulheres de 48 para 55 anos e, para os homens, de 53 para 60 anos. O direito adquirido às regras antigas será respeitado (como é elementar) apenas para aqueles servidores que até 30 de dezembro de 2003 (dia anterior à publicação da Emenda Constitucional nº. 41) possuíam tempo mínimo para a aposentadoria.

A PEC “paralela” (já aprovada por unanimidade no Senado, aguardando apreciação da Câmara dos Deputados) é resultado da “reforma da reforma” ainda não promulgada. Surgiu no Senado com objetivo de discutir algumas questões consideradas polêmicas como a regra de transição, a ampliação da isenção da contribuição dos inativos e o fim da redução de pensões em casos específicos, além de criar um regime especial no INSS destinado aos trabalhadores informais. O regime especial para os trabalhadores sem carteira assinada é uma medida ainda tímida, apesar de válida como mecanismo de inclusão social. Mais ainda estaríamos longe da inclusão dos 40 milhões dos que vivem do trabalho e estão à margem do sistema. Mas o que é paradoxal notar é que criaremos no INSS mais um sub-regime, que também leva a fragmentação do sistema previdenciário.

Da polêmica travada durante a aprovação no parlamento certamente restará a batalha jurídica, que se dará perante o STF, sobretudo em torno da constitucionalidade da contribuição dos inativos e de direitos adquiridos de parcela de servidores.

Colocada na balança, a reforma produziu a fragmentação dos regimes sem eliminar as distorções e o déficit dos regimes. Dessa forma, ficamos cada vez mais longe de construir um sistema público e universal na perspectiva dos direitos sociais – como determina ainda a Constituição – capaz de garantir a proteção social daqueles que trabalham e de seus familiares. Afinal, é para isso que servem os sistemas previdenciários, já que a solvabilidade do sistema não tem um fim em si mesmo. Ao destruímos aos poucos os sistemas tradicionais sem apontar para um novo modelo, abrimos caminho para que, em breve, sejamos submetidos a nova reforma. Em síntese, essa reforma termina inacabada.

Sidnei Machado

é mestre e doutor em direito pela UFPR, professor universitário, advogado.E-mail:
sidneimachado@netpar.com.br

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