A reforma da Previdência e o pragmatismo petista

Leio na Folha de S. Paulo que o PFL definiu-se contra a cobrança da contribuição previdenciária dos servidores inativos. Nada mais previsível. Agora na oposição, o PFL vota contra a proposta do governo. Não interessa o mérito da proposta, mas sim a visão pragmática de obstaculizar uma proposta governista, seja para miná-la, seja para negociar através dela. Não será surpreendente se outros partidos como o PMDB e o PSDB façam o mesmo. O pragmatismo e o fisiologismo são marcas registradas do extinto bloco governista de FHC.

Assustadora mesmo é a postura petista, que muito rapidamente vem tornando-se idêntica ao do governo antecessor. Não estou aqui falando desta ou daquela medida que implica continuísmo em termo de políticas públicas. Por certo que não se poderia esperar uma completa mudança em tão pouco tempo. Parece-me absolutamente acertada a idéia de transição lenta, pelo menos nestes dezoito primeiros meses (como, aliás, tem sido a proposta). Então, tudo bem para os juros altos. Aceitamos. Então, tudo bem para algumas alianças desconfortáveis. Há que se governar. A esperança em um futuro melhor nos faz pacientes e crédulos que as ações atuais se justificam pela conjuntura e são as mais acertadas.

Mas a questão da reforma da Previdência tem demonstrado que o PT ultrapassou todas as barreiras do razoável. Mais que isso, o discurso está totalmente fora de foco. Primeiro, porque no mérito o governo está errado. É juridicamente inconstitucional e perigosa ao Estado de Direito a imposição de contribuição aos inativos. Segundo, porque na forma o discurso está expondo de modo radical a filosofia pragmatista que permeia a ação petista. Lula e vários dos seus companheiros ditos “moderados” estão utilizando um discurso típico de FHC: primeiro, esquecem o que escreveram; depois, chamam aqueles que discordam de bobos; e, finalmente, negociam a aprovação de suas propostas através da distribuição de benesses e cargos.

Tais fatos vêm sendo demonstrados claramente nas manchetes, quando apontam que Lula assinou em 2001 manifesto contra a tributação de inativos. A assinatura de repúdio está arquivada na CNESF, embora Lula esteja procurando ignorar a realidade (outra atitude típica de FHC). Nem precisava ter assinado o manifesto, pois o programa do PT sempre foi contra tal pseudo-contribuição, quando lhe convinha, é claro. Isso é público e notório. Mas não é só isso, pois além de mudar de opinião, Lula passou a chamar seus opositores de bobos, ao dizer: “O deputado pode falar a bobagem que quiser, mas na hora de votar é diferente”. Ou seja, quem discorda de suas propostas, além de estar errado, pois Lula passou a ter o dom da verdade (FHC também o tinha), é um bobo, um imbecil, ou pior, um defensor de privilégios (o que não presume burrice, mas má-fé). Entretanto, Lula não está tão intranqüilo, pois, como noticia a imprensa, tem meios de convencer os deputados, seja com o uso da força bruta (ameaça de expulsões), seja com o uso do orçamento (eu já vi isso antes).

Mas, afinal, Heloisa Helena está errada? Somente um pragmático acharia que sim, pois ela nada mais está fazendo do que ser fiel aos princípios do partido que a elegeu. É preciso lembrar que o governo não é o PT. Aliás, Heloisa está sendo mais PT que o governo. Ou então, o que é mais provável, o PT já não é mais o PT, mas sim um grupo de dirigentes unidos pelas ações e não pelos princípios. Para governar pragmaticamente não se necessita de partidos e sim de um grupo de discípulos obedientes. Se Heloisa estivesse discordando de uma ação do governo, consonante à proposta do partido anterior à eleição, concordo plenamente que ela deveria sofrer reprimendas, pois não estaria sendo fiel ao povo que a elegeu, mas vê-se que não é assim.

No mérito, é importante observar que a contribuição dos inativos não é admissível em nosso sistema jurídico, por duas razões: primeiro, não é contribuição e sim imposto. Segundo, porque o direito adquirido é cláusula pétrea – imutável. Os proventos não equivalem a uma contraprestação pelo serviço prestado, como o salário. Desta forma, somente o trabalhador ativo pode contribuir. Por uma questão lógica, cobrar de inativo significa, nas palavras corretas, reduzir o benefício. E tal redução somente é constitucional se não contiver efeitos retroativos. Assim, o governo poderia, então, indicar uma redução do valor, para os servidores que ingressarem no sistema após a emenda, propondo que recebam apenas 90% ou 80% do valor do salário. O mesmo raciocínio se aplica ao teto. Se não for assim, a emenda aprovará um verdadeiro imposto sobre a renda ou uma redução do benefício – ambas, hipóteses inconstitucionais.

Fala-se muito em justiça, como fundamento para adotar as reformas, pois, e isso é certo, há muita disparidade remuneratória no serviço público. Todavia, um dos pilares da justiça é a segurança jurídica. Se admitirmos que o governo quebre este pilar, ainda que pudesse ser justo no momento, estar-se-ia abrindo a porta para qualquer outra ação, sem limites. Ou seja, o governo não se pautaria em princípios, mas em conveniências (ainda que estas pudessem ser as mais nobres). Aceitar esta possibilidade implicaria admitir como válida a ruptura do sistema constitucional do Estado de Direito, em favor da pretensa governabilidade. Mas o Direito esta aí justamente para isso, para limitar a atividade do governante, que não pode se arrogar da prerrogativa de decidir sobre o justo e injusto, como um Príncipe.

Emerson Gabardo

é mestre em Direito do Estado pela UFPR e professor de Direito Administrativo da UniBrasil.

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