A questão do dolo específico e o Artigo 168-A do Código Penal

No domingo passado (5/3/2006), a edição deste Direito e Justiça trouxe na sua página ?Decisões em Destaque?, a íntegra da Apelação Criminal n.º 3685-CE, sob a rubrica ?Penal. Crime contra a Ordem Tributária. Art. 168-A do C. Penal. Exigência de dolo específico?. Assim, considerando a polêmica em torno do referido tema, traçaremos nas linhas adiante um breve panorama sobre a questão.

I. Introdução

No início deste Século, o legislador pátrio revogando o artigo 95, ?d? da Lei 8.212/91, inseriu no Código Penal, sob a rubrica de ?apropriação indébita previdenciária?, o artigo 168-A(1), fazendo ressurgir o debate em torno da necessidade do animus rem sibi habendi estar ou não presente na conduta do sujeito ativo do referido delito.

II. O elemento subjetivo do tipo penal

O dolo como elemento subjetivo do tipo penal, consiste para o mestre Luiz Regis Prado: ?elemento essencial da ação final?.(2)

Entretanto, alguns delitos exigem além do dolo genérico, um fim especial: seriam ?todos os requisitos de caráter subjetivo, distintos do dolo, que o tipo exige, além deste, para a sua realização?.(3)

Os ?requisitos subjetivos distintos do dolo? se classificam em diversos grupos, dentre os quais está o grupo dos delitos de intenção, que são: ?delitos de tendência interna transcendente, no sentido de que o autor busca um resultado compreendido no tipo, mas que não precisa necessariamente alcançar?.(4)

Por seu turno, o animus rem sibi habendi é uma espécie de elemento subjetivo diverso do dolo, que se enquadra no gênero dos delitos de intenção, onde o agente tenciona um proveito que está contido de maneira transcendente no modelo descritivo da conduta ilícita.

III. A doutrina

A doutrina se divide acerca da exigência do animus rem sibi habendi estar ou não presente na conduta daquele que realiza as elementares do crime de apropriação indébita previdenciária.

Para o mestre Julio Fabbrini Mirabete, o crime de apropriação indébita previdenciária é omissivo puro, se consumando ?quando se esgota o prazo para que se efetue o repasse à Previdência Social?.(5)Seguindo o mesmo entendimento Gianpaolo Poggio Smanio, ao se reportar ao artigo 168-A do Código Penal, entende que:?Não há necessidade de apropriar-se dos valores; ou seja, animus rem sibi habendi, a intenção de inverter o título da posse, passando a possuir a coisa como se fosse sua?.(6)

De outro lado, sustentando tese oposta, o célebre Código Penal Comentado Delmanto ao discorrer sobre o dolo no crime de apropriação indébita previdenciária ensina que:?Dolo (vontade livre e consciente de apropriar-se, deixando de repassar), que deve ser posterior ao recolhimento (desconto), sendo necessário, ainda, o especial fim de agir (para apoderar-se da contribuição recolhida). Para a doutrina tradicional, é o dolo específico?.(7)

O saudoso Nélson Hungria ao discorrer sobre o tipo previsto no artigo 168, do CP, ensina que: ?A posse ou detenção, no âmbito do crime de que se trata, convém insistir, só é aquela que se obtém justamente (…). Várias podem ser as causas da posse ou detenção: locação (…) determinação da lei (posse (…) das contribuições de seus empregados para instituto de previdência, etc)?.(8) [grifos]

Aliás, Nélson Hungria ao comentar a omissão no delito de apropriação indébita, afirma que a mesma deve ser ?precedida ou acompanhada de circunstâncias que inequivocamente revelem o arbitrário animus rem sibi habendi (…)?.(9)

Seguindo a mesma trilha o mestre Hugo de Brito Machado sustenta que: ?Se as normas que dizem ser crime o não recolhimento de tributos nos prazos legais criam tipo novo, diverso da apropriação indébita, são inconstitucionais porque afrontam a proibição da prisão por dívida. Se apenas explicitam que esse não recolhimento configura o tipo do art. 168, do Código Penal, sua aplicação somente há de se dar quando presentes todos os elementos daquele tipo, entre os quais o dolo específico, a vontade consciente de fazer próprio o dinheiro do fisco?.(10)

IV. A jurisprudência

O TRF da 4.ª Região seguindo o mesmo entendimento consolidado pelo E. STJ tem se posicionado no sentido de que no crime previsto no art. 168-A do CP, o tipo subjetivo esgota-se no dolo, não havendo exigência comprobatória do especial fim de agir. (Ap. n.º 2001.71.00.005686-1/RS, DJU 12.06.02, p. 502(11), e ainda REsp 510742 / RS Sexta Turma – DJ 13.02.2006 p. 855).

De outro lado, o TRF da 5.ª Região há tempos vem se manifestando em sentido oposto, conforme se observa de trecho do julgado referenciado no início desta exposição: ?É necessária a prova inequívoca da ocorrência do dolo específico, consistente no especial fim de agir o réu com intenção de não restituir aos cofres públicos a contribuição previdenciária descontada da folha de salários?.

Veja-se, portanto, que apesar da posição consolidada do E. STJ ainda não fixou uma postura uniforme sobre a (im) prescindibilidade do animus rem sibi habendi no delito previsto no art. 168-A do CP.

Entretanto, sempre com o devido respeito àqueles que sustentam a tese da desnecessidade do animus rem sibi habendi no delito em análise, cremos que razão deve assistir à doutrina de Delmanto, Nelson Hungria, Hugo de Brito Machado e tantos outros, como César Roberto Bitencourt e Guilherme de Souza Nucci.

Aliás, no crime previsto no art. 168-A do CP, há de se aplicar os mesmos princípios atinentes ao delito previsto no artigo 168, do CP, já que o referido tipo pressupõe uma conduta mista, pois apesar de omissivo próprio, possui uma fase inicial positiva, que consiste no recolhimento das contribuições dos contribuintes, e uma outra fase posterior consistente em deixar de repassá-las à Previdência.

Portanto, o tipo penal em análise não é formal, pois a omissão no repasse de valores recolhidos dos contribuintes demonstra a ocorrência de um resultado material, que é pressuposto da tipicidade penal do referido crime.

Neste sentido, o mero não repasse das contribuições devidas à Previdência não é suficiente para a configuração do delito, revelando-se necessária também a vontade específica do agente de ter para si os valores recolhidos do contribuinte, ou seja, o animus rem sibi habendi. Trata-se de um proveito que está compreendido de modo transcendente no referido tipo penal.

Finalmente, seguindo a mesma posição de Hugo de Brito Machado,(12) deve-se destacar que o animus rem sibi habendi fica afastado quando há a efetiva contabilização da obrigação de repassar os valores das contribuições, pois desta forma o agente demonstra inegável intuito de se responsabilizar pela dívida, intuito este que não se compatibiliza com a intenção específica de se apropriar.

V. Conclusão

Assim, diante das posições acima analisadas, acreditamos que a tese que sustenta a imprescindibilidade do animus rem sibi habendi no crime previsto no art. 168-A do CP, pela sua percuciência é didaticamente a mais adequada.

Notas

(1)     Mincache, Alan Rogério. Reflexões acerca da Lei 9.983/2000: abolitio criminis e apropriação indébita previdenciária, disponível na Internet: http://www.ibccrim.org.br, 18.06.2003.

(2)     Prado, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro, volume 1: parte geral – 3.ed.rev., atual. e ampl. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p.295.

(3)     Idem, p. 298.

(4)     Idem, p. 298 e s.

(5)     Mirabete, Julio Fabbrini. Manual de direito penal. – 20. ed. – São Paulo: Atlas, 2003, p. 291.

(6)     Smanio, Gianpaolo Poggio. Direito penal: parte especial. – 5.ª ed. – São Paulo: Atlas, 2002, p.98.

(7)     Idem, p. 386.

(8)     Hungria, Nélson. Comentários ao Código Penal. Volume VII – arts. 155 a 196. – Forense – Rio, p.133.

(9)     Idem, p.135.

(10)     Machado, Hugo de Brito. Direito penal tributário contemporâneo: estudos de especialistas. – São Paulo: Atlas, 1995, p.50 e s.

(11)     Jur. Ementada 3335/2002: Disponível na Internet:  http://www.ibccrim.org.br.

(12)     Idem p. 50 e s.

Alan Rogério Mincache é advogado em Londrina, graduado pela Universidade Estadual de Maringá, associado do IBCCRIM, e aluno de pós-graduação do Curso do Prof. Damásio.

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