A punibilidade como terceiro requisito do fato punível

Terceiro requisito do fato punível: a punibilidade (apesar de toda resistência da doutrina penal majoritária 13 Roxin, v.g.) não pode deixar de ser admitida como o terceiro requisito do fato punível. Há um mundo de problemas e questões no Direito penal que só podem ser resolvidos dentro dessa categoria. De outro lado, tanto nossa constituição como nossas leis penais a ela fazem referência em todo momento (CP, art. 31, 97 etc.).

Consiste no seguinte: o fato (materialmente típico e antijurídico) só é punível quando ameaçado com pena.

Punibilidade, destarte, nesse sentido, não tem nada a ver com as conseqüências jurídicas do crime. Faz parte dele, desde que entendido como fato punível.

Injusto penal, fato punível e culpabilidade: o injusto penal é composto de dois requisitos: fato materialmente típico e antijurídico. O fato punível exige três requisitos: fato materialmente típico, antijurídico e punível. A culpabilidade, como se nota, definitivamente, não integra o conceito de crime em nenhum dos dois sentidos expostos. Não pertence à teoria do delito. Mas como pressuposto indeclinável da pena, é ela que faz a ligação entre a teoria do delito e a teoria da pena. Como valoração do objeto, é juízo de reprovação que recai sobre o agente do fato punível.

O crime, como se vê, não exprime um conceito unívoco. Pode e deve ser compreendido ora como injusto penal, ora como fato punível. O primeiro tem dois requisitos. O segundo tem três requisitos. De qualquer modo, dele não faz parte a culpabilidade (que cumpre no Direito penal o papel de elo de ligação entre a teoria do delito e a teoria da pena).

Advertência e re melior perpensa: nos meus trabalhos e escritos anteriores cheguei em algum momento admitir a culpabilidade como requisito do fato punível. Na verdade, não é bem assim. Ela não faz parte do 1Cfato 1D nem da 1Cpunibilidade 1D. Está fora do injusto penal assim como do fato punível. Vem, cronologicamente falando, depois dos três requisitos que compõem o fato punível (fato materialmente típico, antijuridicidade e punibilidade). A ela está destinada a função de vincular a teoria do delito com a teoria da pena (leia-se: o crime com a pena).

Da punibilidade como expressão do primeiro momento do ius puniendi: ainda que se trate de fato materialmente típico e antijurídico, não havendo ameaça da pena, não há que se falar em fato punível. Nessa categoria do fato punível, portanto, entram condições ulteriores e externas em relação ao injusto penal (leia-se: ao fato materialmente típico e antijurídico), que fundamentam ou suspendem ou extinguem o ius puniendi. Quem delibera sobre a oportunidade de se ameaçar com pena ou não um injusto penal é o legislador. Da punibilidade, como requisito do fato punível, assim, quem cuida é o legislador (que, às vezes, remete ao juiz o encargo de verificar no caso concreto se ela deve persistir, ou não. Isso se dá, por exemplo, com o perdão judicial).

Em regra o injusto penal é ameaçado com pena (é punível). Mas quem exerce o juízo de oportunidade sobre isso, como salientamos, são os representantes diretos da soberania popular, que podem afastar essa ameaça por razões de política criminal, fundado em critérios de merecimento de pena e necessidade de pena.

O ius puniendi (como direito subjetivo do Estado) possui três momentos: (a) direito de ameaçar com pena; (b) direito de aplicar a pena; (c) direito de executá-la.

A punibilidade, como requisito do fato punível, corresponde ao primeiro momento e consiste no direito de o Estado (em razão da sua soberania e da sua competência para legislar em matéria penal), por meio de lei (elaborada com todas as garantias constitucionais), ameaçar o cidadão com uma pena, com a finalidade de evitar que ele venha a violar a norma penal respectiva.

Punibilidade, pretensão punitiva e pretensão executória: comprovado que o fato é ameaçado (em tese) com pena, assim como a ausência de causas de impunibilidade, estamos diante de um fato punível. Em tese, cuida-se de fato punível. Mas isso não permite desde logo qualquer atuação do Estado contra um agente concreto.

Seu direito de perseguir ou de apurar o fato bem como o de aplicar a pena respectiva (esse constitui o segundo momento do ius puniendi) só passa a existir concretamente quando alguém viola a norma penal. Dito de outra maneira: com a violação da norma penal o direito de punir em abstrato (só previsto em lei) transforma-se em direito concreto de punir.

Em linguagem processual, surge para o Estado (nesse instante) uma pretensão punitiva concreta (para os que admitimos que se possa falar em pretensão punitiva no âmbito criminal). O Estado, a partir do momento da violação punível de uma norma penal (desde que constatado um fato materialmente típico, antijurídico e punível) conta com o direito de colocar em marcha o seu aparato para a investigação do crime e abertura do devido processo (respeitado-se todas as regras e limitações que o ordenamento jurídico impõe). Por meio do devido processo legal (ou, mais precisamente, do devido processo penal) pode impor ao responsável a pena cominada para o delito.

Aplicada a pena e havendo trânsito em julgado definitivo, fala-se agora não mais em pretensão punitiva, senão em pretensão executória (esse é o terceiro momento do ius puniendi).

A doutrina penal ainda confunde os três momentos do ius puniendi. A punibilidade, entendida como possibilidade de aplicação de um pena, refere-se à pretensão punitiva (que é o segundo momento do ius puniendi). A punibilidade compreendida como direito de ameaçar com pena constitui o primeiro momento. Nesse sentido não é efeito do crime ou conseqüência do crime (como alguns autores afirmam), senão parte integrante dele (quando concebido como fato punível, repita-se). Punibilidade não é a mesma coisa que 1Cpena 1D. A pena é conseqüência do crime, não a punibilidade (entendida como possibilidade de ameaçar um fato com pena).

As causas de extinção da punibilidade (leia-se: da pretensão punitiva ou da pretensão executória) não afetam o injusto penal (isto é, o fato materialmente típico e antijurídico), mas sem sombra de dúvida eliminam o terceiro requisito do fato punível (a punibilidade), não podendo o Estado a partir daí praticar qualquer ato persecutório contra o agente. Ocorrida uma causa de extinção da punibilidade torna-se impossível aplicar contra o agente pena ou mesmo medida de segurança (CP, art. 96, parágrafo único). Aliás, nem processado ele pode ser (CPP, art. 43, II).

Sendo a punibilidade requisito do fato punível, uma vez extinta, não se apaga o injusto penal, mas não há que se falar em fato punível. O sujeito comete um crime de furto simples, que prescreve em oito anos. Ocorrida a prescrição (que é causa extintiva da punibilidade), jamais pode o Estado processar o agente (porque desapareceu a pretensão punitiva). Efeitos distintos possui a extinção da pretensão executória em razão da prescrição. Nesse caso a condenação persiste na vida do agente (para efeito da reincidência, dos antecedentes criminais) e o que extingue é só o direito de se executar a pena (terceiro momento do ius puniendi). Uma coisa, portanto, é a punibilidade entendida como direito de ameaçar com pena, outra distinta é a punibilidade compreendida como pretensão punitiva ou pretensão executória.

Causas de impunibilidade (ou excludentes da punibilidade): a tentativa de contravenção constitui exemplo do que acaba de ser exposto. Nela há um injusto penal (um fato materialmente típico e antijurídico) mas o legislador afastou qualquer ameaça de pena (LCL, art. 4.º). Não é punível. Nessa mesma linha acha-se o ajuste, a determinação ou instigação e o auxílio, salvo disposição expressa em contrário, se o fato não chega, pelo menos, a ser tentado (CP, art. 31). Quando há expressa disposição em sentido contrário não se aplica o art. 31 (exemplo: quadrilha ou bando).

Pode-se afirmar a mesma coisa em relação às escusas absolutórias (CP, art. 181, v.g.). Exemplo: crimes patrimoniais ocorridos sem violência dentro das relações familiares (filho que furta pai, furto entre cônjuges etc.) não são puníveis. Não há que se falar em fato punível.

A imunidade diplomática também é uma causa de impunibilidade (no que diz respeito ao Direito penal brasileiro). Se um embaixador estrangeiro cometer um crime no Brasil (isto é, um fato materialmente típico e antijurídico), não responde por ele no nosso país, porque tal imunidade assegura precisamente que sua responsabilidade penal vai acontecer no seu país de origem. O fato por ele cometido é ameaça com pena, porém, essa ameaça não vale para ele aqui no Brasil. O fato não é punível para ele no nosso país. Em outras palavras: o fato não é punível aqui.

Ainda podemos citar como causa de impunibilidade, a título de exemplo, a ausência de uma condição objetiva de punibilidade. Cuida-se de condição exigida pelo legislador para que o fato se torne punível e que está fora do injusto penal (logo, fora do dolo do agente). Chama-se condição objetiva justamente porque independe do dolo ou da culpa do agente. Exemplo: no art. 7.º, § 2.º, 1Cb 1D está dito que a lei penal brasileira aplica-se para fato ocorrido no exterior se descrito como crime no país em que aconteceu. Estar o fato descrito como crime no país que foi palco do ocorrido é condição objetiva de punibilidade. Se ausente, o fato deixa de ser punível (no Brasil).

Causas suspensivas da punibilidade (da pretensão punitiva): as causas suspensivas da pretensão punitiva (leia-se: da punibilidade entendida como direito de aplicar a pena) só podem acontecer até o trânsito em julgado. Isso se deu, por exemplo, com as Leis 9.964/00 (Refis I) e 10.684/03 (Refis II). Todos que ingressaram no Refis (Programa de parcelamento de débitos fiscais) contaram com o direito de suspensão da pretensão punitiva (isto é, direito de ver interrompida a atividade persecutória estatal, suspendendo-se também a contagem do prazo prescricional).

Causas extintivas da punibilidade (da pretensão punitiva ou da pretensão executória): as causas extintivas da punibilidade, que não se confundem com as causas de impunibilidade nem com as suspensivas, ou eliminam a pretensão punitiva do Estado ou sua pretensão executória. São muitas as causas extintivas, sendo que a maior parte delas está prevista no art. 107 do CP (morte do agente, anistia, abolitio criminis etc.).

Podem ocorrer antes do trânsito em julgado final ou após. Se ocorrem antes, são causas extintivas da pretensão punitiva. Se se dão depois, são causas extintivas da pretensão executória. A morte do agente, por exemplo, pode dar-se em qualquer um desses momentos. Diga-se o mesmo quanto à prescrição.

Punibilidade e condições de procedibilidade: a primeira pertence ao fato punível (ao Direito penal). As segundas integram o Direito processual penal. São condições exigidas para o regular exercício do direito de ação. São genéricas ou específicas. As primeiras são exigidas em todas as ações (possibilidade jurídica do pedido, legitimidade para agir, interesse de agir e justa causa). As segundas são requeridas em alguns casos (representação da vítima, requisição do ministro da Justiça etc.).

Luiz Flávio Gomes

é doutor em Direito Penal pela Universidade Complutense de Madrid, mestre em Direito Penal pela USP, co-fundador e primeiro presidente do IBCCRIM e diretor-presidente do IELF (Cursos jurídicos transmitidos em tempo real para todo País –
www.ielf.com.br).

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