A PAIDEÍA JURÍDICA: Entre juristas tecnocratas e juristas curadores de si

Ingressar num Curso de Direito, sem embargo seja tão-somente um fato dentre tantos que se sucedem na vida, tem, contudo, uma peculiar importância que vai muito além da mera preparação individual para um mercado específico de trabalho, o mercado jurídico, e toda a sorte de seus prazeres e leviandades, ganhando foros de formação individual, de constituição espiritual e de contribuição para ser o excesso de si mesmo, o outro de si mesmo, a forma mais perfeita, o melhor dos homens, como quisera Deleuze ou o Übermensch (super-homem) nietzscheano, mais vivo e mais robusto que um indivíduo pode experimentar ao longo dos seus passos e de suas transformações. É apenas um passo, certamente, que há pouco se iniciou, mas que ganha ou deve ganhar uma dimensão fantástica e infinitamente mais profunda, noutras extremidades, que usualmente os homens insistem em deslembrar.

Estamos acostumados, apesar das mudanças significativas proporcionadas pelos descendentes de Lyra Filho, a um modelo de ensino jurídico ainda retrógrado, desses que deixariam proculeianos e sabinianos afoitos e envaidecidos com a herança de sua prudência. Ainda experimentamos, mesmo que de uma maneira mais humana e menos positivista, mais social e menos ideal, o ensino jurídico como uma grande arte de formar juristas para se tornarem tecnocratas, que vestidos com suas togas ou suas becas, no brilho das talares, e armados com seus códigos, deixar-se-ão corromper futuramente pelo poder que a profissão lhes concede sobre os outros homens, e pelos benefícios econômicos que ela lhes proporciona.

O que se busca com uma faculdade de direito, e por que essa razão reflete o que se ensina, ainda é, para muitos, a técnica de formar juristas habilidosos no uso das normas, para que, preparados com sua caixa de ferramentas, possam se debruçar sobre a realidade, e tentá-la construí-la à sua triste imagem e à sua indecorosa semelhança. O que os homens buscam ao ingressarem num curso jurídico, e as faculdades de um modo geral tendem a satisfazer-lhes a necessidade, é o grande milagre de se tornarem, sobretudo de uma hora para outra, respeitados por suas propriedades, por suas relações intersubjetivas, por seu ouro, como bons fazendeiros de um engenho jurídico, preferencialmente vistoso e de largos alqueires, capazes de se perder no horizonte da vaidade e da frivolidade.

Os anos que se ?gastam? com um curso jurídico servem apenas para formar, com a aquiescência dos interessados, ágeis instrumentadores cirúrgicos dos problemas sociais, ou sagazes técnicos mecânicos, que com seus tornos, são capazes, na glória da tecnologia, de girar a realidade, aplainando-a e a fresando como se tudo fosse sempre igual, como se todos tivessem as mesmas circunstâncias e oportunidades na vida, como se o mundo e suas imperfeições pudessem ser simplesmente desbastados, e toda a sua injustiça pudesse ser resolvida nas potencialidades das mãos de um jurista tecnocrata.

O ensino jurídico que ainda hoje se espera das faculdades de direito não está muito distante, especialmente no Brasil, do modelo importado no século retrasado, quando nossos antepassados se preocupavam em construir um sentido de nação, de pátria, na vã tentativa de nos deixar definitivamente livres da opressão européia de nossa metrópole. Que a dogmática e a técnica jurídica são importantes, ninguém pode negar, já que elas ganham especial relevo para a consecução dos bons propósitos de justiça que o indivíduo tenha consigo. Entretanto, um curso de direito deve ser apenas um passo, num projeto muito maior, que é a formação dos indivíduos em sua perfeição moral e de suas virtudes em direção ao sentido de toda a humanidade, em direção à sua liberdade, e, especialmente, à sua felicidade. Apesar disso tudo, algumas renomadas faculdades de direito, sobretudo da culta e européia Curitiba, estão sendo capazes de deixar boquiabertos até mesmo Napoleão e suas Écoles Politichniques, mecanizando seus currículos, profissionalizando seus cursos, produzindo seus trainees, e extinguindo inconseqüentemente as propedêuticas.

 A experiência jurídica, que se inicia já nos anos de faculdade, deve ser antes o exercício do pensar em direção à sabedoria e não apenas o conhecimento técnico em direção da realização profissional. Como diria Tercio Sampaio, "a sabedoria não é ato nem resultado da ciência ou do conhecimento, mas do pensamento, da reflexão … a ciência não nos liberta porque nos torna mais sábios, mas é porque nos tornamos mais sábios que a ciência nos liberta." Isso deve nos tocar e muito, porque nos ajuda a construir uma outra idéia de formação jurídica. A formação jurídica, portanto, não pode de modo algum se resumir à ciência do direito, ou pior, à razão instrumental que comanda o mundo contemporâneo, nitidamente apegado à praticidade, à otimização do raciocínio, à velocidade das soluções, à agilidade dos fluxos de energia, à efetividade dos resultados, à economia dos meios, à síntese dos processos criativos, etc., porque senão, nesta era da worldliness (mundanidade), de um homem produtor, como quisera Arendt, o egoísmo humano e a paixão pelos vícios, como denunciaram Hobbes e Maquiavel, podem se rebelar contra os anseios rousseaunianos, e devastar o seu próprio sentido.

Para compreender e constituir um sentido de formação jurídica que construa juristas curadores de si e não apenas tecnocratas, é conveniente resgatar uma experiência diferente do mundo de hoje, uma experiência vista de um outro lugar, que a humanidade já vivenciou na Antigüidade. Certamente, o regresso aos clássicos, nesse sentido, consoante a viva interpretação de Werner Jaeger, o resgate da origem, da ?DP0, é um motivo constante na história da filosofia como uma espécie de espontânea renovação de sua influência, significando apenas uma necessidade vital, e não uma autoridade imutável, fixa e independente do destino do homem. Não quero de modo algum reconstruir uma forma de utopia helênica, uma construção idílida do passado acreditando em sua superioridade, apenas a reconstrução de uma visão diferente do mundo e dos homens, da qual se está há muito tempo apartado e pode nos ajudar a compreender o sentido da formação, da educação (B"4*g\") para os gregos, e, a certa medida, ajudar-nos a reformular o nosso sentido de B"4*g\" jurídica contemporânea.

Os gregos, assim como nós, também se preocupavam com o ensino das normas, pois sabiam que elas ajudariam a construir a B`84H, embora desde o início da formação do indivíduo e de uma maneira extraordinariamente mais interessante e mais sensata do que nós. Queriam eles que a geração futura soubesse melhor compreender o mundo que seus homens presentes faziam, mas também, queriam que seus antepassados fossem constantemente lembrados, já que arriscavam ampliar o sentido de B"4*g\", levando-a às noções de cultura, tradição, civilização, etc., inserindo-a, assim, numa dimensão temporal naturalmente distinta. A B"4*g\" procurava levar o indivíduo em direção ao equilíbrio e ao domínio de si, para que o sujeito ganhasse um sentido autárquico e de imensa responsabilidade com a sua condução pessoal, com seu ?2@H. Assim supõe Platão no Górgia, "governar a si mesmo é ser temperante, ter autodomínio, comandar em si próprio os prazeres e as paixões." Ser temperante é, portanto, condição que o exercício da B"4*g\" deve ser capaz de transferir. Deve-se cuidar desde o início, pois como dizia Cassíodo, quod in iuventute non discitur, in matura aetate nescitur (o que não se aprende na juventude não se sabe na maturidade).

Por essa razão, criam os gregos todo um programa educativo que, uma vez seguido, é capaz de conduzir o homem comum a tornar-se virtuoso. De um modo geral, a criança, acompanhada pelo B"4*"(T(`H (pedagogo – escravo que o auxiliava e lhe ajudava nos estudos) deveria logo no início se dedicar à ginástica (à cura do pedotriba), para que a virtude da bravura pudesse na mocidade encontrar-se no corpo forte e treinado. Em seguida, a música para desenvolver a sensibilidade do espírito em sintonia com a cítara, conjugada com a leitura e o canto dos poetas arcaicos, além da gramática, do estudo das normas, e dos cálculos (aritmética, geometria, estereometria, astronomia e harmonia). O propósito da ampla dimensão dos estudos é desenvolver no jovem as virtudes do corpo e da alma, a F@nD@Fb<0 (prudência), para que tivesse um completo domínio de si, além de um austero ?2@H jurídico e da F@n\" (sabedoria), para que bem pudesse enfrentar as adversidades da vida. O programa educativo, feito nas escolas à supervisão do Estado, traduz assim a possibilidade de constituir um ?homem? (porque às mulheres competia a educação doméstica – (L<"46@*@L8g4V – ?coisas de mulher? – dada pelas mães no gineceu para que não se tornem mulheres de má reputação – (b<"4@ -, ao menos antes das proposições platônicas) ideal, equilibrado, harmônico, com justa medida, dominador de suas maiores apetites e curador de si mesmo.

Toda a educação grega entre os sécs. VI e IV a.C. de um modo geral se volta para que o jovem aprenda desde cedo a moderação, o equilíbrio, a justiça, o cuidado de si, por isso o citarista, o mestre responsável pela educação da música, e, logo, de desenvolver a sensibilidade no espírito da criança, é o mesmo que lhe fará sempre o reforço da F@nD@Fb<0. Sensíveis ao ritmo e à harmonia das canções das musas, e afinados nas metáforas e nas rimas da poesia e do drama, aptos estavam os jovens para na vida futura saberem bem julgar e agir conforme a homologia com a natureza. Por isso todo grande juiz tinha dentro si para os gregos a harmonia e a sensibilidade que o julgamento exigia. A educação ática, e nesse aspecto não muito diferente das demais colônias, era feita a duras penas para que a criança (B"4*\), através do contato com a civilização grega (B"4*g\"), pudesse ter na maturidade o preparo e a retidão da vida na B`84H. A duras penas significa até mesmo ?castigar? se preciso fosse para que o jovem controlasse suas paixões (e os gregos se utilizando da mesma raiz da criança, criaram o ?castigo? – B"4*-g:`H – para bem educá-la). Longe da covardia do espírito, da lassidão do corpo, da desarmonia da alma, da insensibilidade da palavra, da desmedida da ação e da ignorância do raciocínio o jovem está preparado para se tornar um homem virtuoso, curador de si, de seu ?2@H e desempenhar as principais funções da vida pública, inclusive julgar os outros nos grandes tribunais populares.

Contudo, para que bem pudessem chegar à plenitude de sua vida moral, além de saberem se conduzir por seus papéis em casa, nos debates e nas coisas de todos, como visto, deveriam necessariamente saber cuidar das normas. Essa educação realizada nas escolas deveria fornecer à juventude, além dos costumes da guerra e do esporte, em grande parte os elementos da linguagem, da justiça, da música e do exercício das palestras. É o domínio de todos os expedientes humanos e de todas as experiências da alma que conformam os jovens a serem virtuosos. Sabiam os gregos, por essa razão, que o conteúdo do ensino haveria de ser variado, conforme os propósitos que se queriam imprimir nas gerações futuras. Era indispensável o exercício do corpo, a glória da ginástica na educação dos jovens, no entanto, assume Xenofonte, que esse preparo servia apenas à guerra, ou aos jogos, pois para ocupar as magistraturas, os tribunais, haveria de existir um cuidado com as qualidades da alma.

Nessa medida, os gregos, na construção dos limites de sua B"4*g\", que não é mera educação, mas talvez integre o próprio conceito de civilização, assumiam a educação jurídica como um lugar de destaque, ao menos no final do século V, especialmente como a educação para as normas, para o justo. A noção de B"4*g\" que arrisca Platão, pressupõe naturalmente a sua formação dedicada às normas: ela forma "desde a infância para a virtude" e inspira o jovem "o desejo apaixonado de tornar-se um cidadão realizado, sabendo comandar e obedecer segundo a justiça".

Trata-se, além de um saber teórico, de uma educação voltada para a prática, característica essa típica dos atenienses. O direito, para os gregos, "devia ser aprendido vivenciando-o" (José Reinaldo Lopes). Por isso, aos jovens atenienses lhes era dado o ensino das normas para que aprendessem conceitos como direitos cívicos, cidadania, liberdade, e, nessa medida, pudessem se constituir como sujeitos morais, sobretudo ao fazer da justiça uma forma de virtude e pudessem na vida cotidiana bem aplicá-la. A própria educação para o Estado significa a educação para a justiça, segundo Jaeger. Não se ?pratica? a justiça, como não se praticam as demais virtudes, se não se dirige constantemente a elas. Platão reconhecia na B"4*g\" a necessidade da tributação às normas, pois sabia que "as leis deveriam fazer parte da educação do cidadão." O cidadão só o seria na plenitude do termo quando bem soubesse o conteúdo das normas e dos princípios jurídicos, pois então, na sua ascese jurídica, alcançaria a sua excelência moral, cuidando dos prazeres e dos excessos em casa, e da intemperança e dos desabusos na ?DgJZ. Sendo temperante, sustenta Platão, saberá o homem constituir a sua cidade-estado à sua imagem e semelhança.

Uma vez egressos das escolas, a B`84H continuava a sua educação, exigindo que os jovens aprendessem as leis e de acordo com elas vivessem, para que se integrassem na vida pública e não vivessem como bárbaros ($"D$"D`H) ou como escravos (*@b8@H). É preciso, argúi Platão, que os jovens cuidem da ?DgJZ  privada mas também ?DgJZ  pública. Por essa razão, a educação oferecida pela B`84H procura fazer aparecer na criança o futuro homem público, o homem da cidade. O "cidadão sai do adolescente", sustenta Xenofonte, não apenas pela educação voltada para a boa caça (e nessa medida para suportar as fatigas da guerra), mas para o bom cuidado com as normas, preparando-se para gerir as mais importantes magistraturas. O programa educativo cumpria então para os áticos, longe da simples bravura e força física, dois objetivos principais: sensibilizar os homens para o cuidado de si e para a moderação das paixões, bem como sensibilizá-los para as normas da cidade, tornando-o cidadão e autárquico. Tanto nas escolas quanto na cidade a B"4*g\" não cessava nunca de constituir o homem no seu ?2@H jurídico.

Platão designa, então, como o grande papel da B"4*g\": a formação do indivíduo. Através do ensino de uma cultura geral, a formação do indivíduo se completa quando disposto publicamente na ?(@DV. Doravante, o indivíduo formado em suas virtudes privadas e públicas torna-se apto a transferir o legado grego aos novos cidadãos, orgulhando-se por não ser bárbaro, e assumindo o grande sentido da B"4*g\", que não é mera transferência de um saber utilitário, mas de um conhecimento sobre o mundo e sobre si mesmo, desvelado na sua própria constituição. A original reflexão platônica, que estende os anos de formação para além da escola, ?num processo de construção crescente? (Jaeger), propicia transformar o jovem no grande homem grego e lhe dá um sentido fundante, qual seja, o de estar sempre em constante processo educativo (Platão). É a busca de uma excelência humana, virtuosa, porque curadora das artes, da casa, da cidade e de si mesma que se apresenta à formação do indivíduo.

A B"4*g\" corresponde, assim, a essa formação global que constitui o cidadão grego, iniciada com a bravura da guerra e a sensibilidade sugerida pela harmonia dos sons e das belas letras, e concluída com a inserção do indivíduo na B`84H pelo ensino cuidadoso da austeridade da experiência jurídica. É a recepção do conceito de liberdade e de cidadania fora das academias que fazem florescer o lugar privilegiado que a especificidade da B"4*g\" jurídica ocupa na tradição grega. A educação para o bom uso das normas através do controle de si mesmo e da atenção à construção política, conjugada à abstração filosófica, permite o homem grego se reconhecer na sua forma humana (num original sentido de humanismo), e ter a si como uma idéia, como uma imagem genérica universalmente validada de homem. Conhecer a si mesmo, como quisera a percepção socrática dos escritos de Delfos, pressupõe não um conhecimento individual apenas, egocêntrico, mas o conhecimento de si para conhecer o mundo, para conhecer o que faz de todo homem um homem grego. Um conhecimento obtido pela B"4*g\" e que leva o indivíduo a zelar por seu ?2@H jurídico, essencialmente humanista e justo, mas inspirado e voltado para o cidadão solitário. É essa forma de antropologia filosófica que desloca a singularidade do jovem para a compreensão da educação da humanidade, que busca sempre assumir uma plenitude moral, uma forma de experiência ascética.

Assim, o sentido de B"4*g\" para os gregos tinha uma dimensão muito mais profunda e vasta, pois sabiam que "ser bem formado", 6Dg\JJT "ßJ@Ø (superior a si mesmo), o que naturalmente também dependia de um interesse pessoal, significava uma vida em direção às virtudes, e, portanto, também à gÛ*"4:@<\" (felicidade). Uma vez mal constituído, mal formado, dificilmente a B`84H ou a vida conseguiriam mudá-lo, como bem lembra a ironia da comédia de Aristófanes: @ÜB@Jg B@4ZFg4H JÎ< 6"D6\<@< ÏD2" $"*\.g4< (nunca conseguirás fazer um caranguejo andar direito). Os gregos, portanto, podem muito nos ensinar a pensar um sentido de B"4*g\" jurídica diferente, que envolve um conteúdo programático extenso, e, ao mesmo tempo, um grau de responsabilidade pessoal também significativamente forte, porque destinado à formação das virtudes individuais. Ser educado, saber cuidar de si é o primeiro passo para que se possa, então, poder cuidar dos outros. Somente se pode ir além de si mesmo se se está bem constituído, preparado na técnica, mas, sobretudo, preparado no espírito e nas virtudes.

Transpondo-se isso para a nossa a realidade, o que se evidencia é que para ser um jurista curador de si e não tecnocrata, não basta, entretanto, apenas uma boa formação técnica, é preciso, portanto, uma formação global, direcionado à boa e inteligente compreensão de sua B`84H, de seu mundo, bem como a consagração de suas virtudes. Isso nos remete à idéia de que um jurista só será curador de si, no sentido grego, a partir do momento em que ele puder também cuidar dos outros. Mas para poder cuidar dos outros, é indispensável que conheça a realidade desse outro, suas dimensões, suas especificidades, suas diferenciações. Compreender a dimensão do outro, no Brasil, significa então, procurar ao máximo conhecer a realidade do brasileiro e sonhar, para a construção de seu espírito, com uma nova forma de configuração do mundo material, e uma nova forma de homem. Estudar nossos juristas: Paulo de Barros, Tercio Sampaio, Souto Maior, J. A. Gediel, Celso Ludwig, etc., mas também nossos demiurgos, Raymundo Faoro, Caio Prado, Celso Furtado, Buarque de Holanda. Formar-se, no sentido ático, é portanto, acreditar que se pode atingir a felicidade pela compreensão do outro e pelas transformações da comunidade. Jamais será curador de si, se o seu espectro no mundo redundar-se a si mesmo. Deve estar atento a si próprio, para atentar-se aos outros, ocupar-se consigo mesmo (,"LJ@L ,B4:,80FJV4), para se ocupar com os outros. Só virtuosos podem contribuir para que os outros o mesmo sejam, mas também só será virtuoso, e, bem formado, se procurar nos outros ver a excelência de si mesmo. Eis a fuga da complacência dos burros que se coçam no Brás Cubas.

Há nisso tudo, portanto, uma certa doze também de quimera, mas uma quimera necessária, uma fantasia que no espelho de Policarpo Quaresma, faça-nos acreditar sempre que é possível acontecer, que é necessário valorizar a nossa verdadeira identidade nacional, nossos próprios valores, nosso outro. Mesmo que tenhamos que morrer fuzilado como a personagem de Lima Barreto, devemos confiar na nossa terra e na nossa gente, na possibilidade de construir novos cidadãos, longes da degradação dos homens da república dos coronéis, uma nova pátria, um novo projeto. Lutemos, como a marginalidade de Quaresma lutou contra a corrupção de sua época. Cuidemos dos outros, de nossos outros, ainda que isso não passe de um sonho de sala de aula, como não passou de um sonho do gabinete do visionário. Conheçamos a realidade de nossos outros, e para a isso a formação jurídica pode muito ajudar, para melhor atingi-la, e procurar constituí-la na excelência de suas virtudes, de seu ?2@H. Cuidar de si, para cuidar dos outros, complementando, portanto, a sua própria formação individual.

Entretanto, há ainda uma derradeira lição que os gregos nos deixaram, e que o mesmo escritor, tão cônscio de nossa realidade, de nossa B`84H, também nos deixou, que é a J"Bg4<`F4H, a humildade. Somente nos tornamos juristas curadores de si, e não meros tecnologistas, quando compreendemos que é preciso formarmos-nos em nossas virtudes, cuidar de nós mesmos para podermos cuidar dos outros, mas, sobretudo, quando percebemos que o conhecimento do direito, como outros tantos conhecimentos, não nos servem para nos erguermos sobre os outros homens, servem apenas para melhor compreender o mundo e nele criar possibilidades de uma nova realidade do sentido da humanidade, da felicidade da comunidade. Como sua personagem de Clara dos Anjos, jovem mulher, mulata, pobre, suburbana, desvirginada pelo homem branco, que conseguiu construir novamente sua vida e atingir a felicidade, e a única lição que levou de tudo isso é que: "Nós não somos nada nesta vida, nós não somos absolutamente nada nesta vida". Sejam bem vindos à paidéia jurídica!

Guilherme Roman Borges é advogado; mestrando em Filosofia e Teoria Geral do Direito na USP; mestre em Sociologia do Direito na UFPR; professor de Economia e Direito Econômico no Unicenp.

Aula magna proferida no Curso de Direito do Unicenp em 06.03.06.

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