A ordem social constitucional: notas sobre a disfunção do direito

A valorização do trabalho humano, mediante proteção e tutela do economicamente debilitado, é marca indelével na sistematização do Direito do Trabalho – antes mesmo de sua elevação para o standard constitucional -, em contraponto à liberdade de iniciativa do capitalista empreendedor, a quem o sistema jurídico estatal sempre legitimou a apropriação da força do trabalho e tolerou a posse do lucro.

Sucede que tal mundividência foi, nos dois últimos quartéis do século, fendida e, ao depois, fraturada, ante a chegada de três eventos inter-relacionados, a saber: um científico: a informática(1), consistente no domínio da informação através do uso de equipamentos e processamento de dados; um econômico, a globalização, processo que conduz a crescente integração das economias e das sociedades dos vários países, especialmente no que toca à produção de mercadorias e serviços, aos mercados financeiros, e à difusão de informações, e, um político, o neoliberalismo (doutrina que favorece uma redução do papel do Estado na esfera econômica e social, contrapondo-se à tendência anterior de aumento da intervenção governamental, em economias capitalistas, como resultado da adoção de políticas sociais de natureza assistencial (“welfare state”) e de políticas econômicas keynesianas(2).

E, hoje, “o nosso planeta encontra-se sobre a pressão de duas forças colossais, justapostas: a globalização e a desintegração” (Boutros Gali, secretário-geral da ONU), pois a globalização, como prática econômica, e o neoliberalismo, como doutrina que a avaliza, privilegiaram porção minúscula da humanidade, bem definida geograficamente pelos países ricos, e lançaram à inópia uma sua grande parte, por todos os continentes.

De viés, pode-se afirmar que o capital, que movimentava a economia à produção, passou a ser de especulação, estando fora do controle estatal, face a sua volubilidade e não identidade. Ainda, a progressão científica, aplicada na produção de bens e serviços, pela adoção de novas técnicas (informatização e robotização), trouxe o germe do desemprego.

E o Brasil é pertinente sinopse da dita realidade.

E o direito, como conjunto de normas que regram a sociedade, também foi alvejado pela nova ordem econômica, encontrando-se em grave disfunção, a iniciar-se pelo topo, bastando lembrar que a vigente Carta Política/88 já recebeu mais de três dezenas de emendas em porção temporal inexpressiva.

A melhor exemplificação, tome-se o Direito do Trabalho: em cada dez brasileiros que se subordinam na prestação de serviço, quatro estão à margem da lei, ainda que os preceitos constitucionais, ao lado de orná-los com significativa pletora de benesses, também anele a construção de uma “sociedade livre, justa e solidária” (inc. I do art. 3.º).

À recuperação funcional do direito, ao Estado, “como agente normativo e regulador da atividade econômica” (art. 174/CF), cabe: submeter a economia à sociedade, via rigoroso disciplinamento do capital especulativo, o que será possível efetivar com a concorrência da vontade de todos os países, não e nunca por ato isolado, ante o poderio do mesmo;

incentivar a atividade privada, via liberdade de iniciativa e de concorrência, privilegiando a empresa nacional e incrementando a formação de blocos regionais, como meio de fortalecimento de sua economia; exercer com rigidez o seu poder de polícia sobre a relação capital e trabalho, impedindo que a empresa, maculando a sua função social, frustre/sonegue os direitos trabalhistas.

Enfim, direitos sem concretude desservem à sociedade e banalizam o seu sistema jurídico.

Notas

(1) Expressão criada pelo francês Philippe Dreyfus, em 1962.

(2) Teoria do britânico John Maynard Keynes (1883-1946) que enfatiza a importância da demanda agregada na determinação do nível de produto e de emprego da economia, e a conseqüente necessidade de políticas governamentais de estímulo à demanda, em situações de recessão.

Hélio Gomes Coelho Júnior

é advogado, professor da PUCPR, mestrando pela Faculdade de Direito de Curitiba.

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