A ONU e a responsabilidade pela impunidade

O resultado davisita da senhora Asma Janhangir, relatora especial da Comissão de Direitos Humanos para Execuções Extrajudiciais das Nações Unidas (ONU) ao Brasil, causou enorme debate em torno da responsabilidade do Poder Judiciário nos índices alarmantes de violência e de impunidade registrados no País, bem conhecidos pelo povo brasileiro.

A imprensa noticiou que a representante das Nações Unidas sugeriu o envio de especialistas da ONU para inspecionar a Justiça brasileira e verificar o desempenho do Poder Judiciário, especialmente no que diz respeito aos direitos humanos.Os jornaisinformaram queopresidente Lula, apoiando a sugestão, responsabilizou o Judiciário por parte dosproblemas de violência e criminalidade no Brasil, sendo mais enfático nesse sentido o ministro Márcio Thomaz Bastos, advogado criminalista que alcançou enorme sucesso mesmo com a existência de legislação processual penal carregada de conteúdo procrastinatório, marcada pela ineficácia punitiva aos réus defendidos pelos bons causídicos.

Em que pese a versão predominante traduzida pelo Executivo, não se tem certeza sobre a verdadeira intenção da senhora Asma Janhangir ao criticar o sistema judiciário. No Brasil, ao contrário de outras nações, não cabe ao juiz desempenhar tarefas importantes ligadas à investigação do fato criminoso e ao zelo pelo cumprimento da pena.

Se não bastasse a submissão do País aos compromissos financeiros internacionais, que tantos sacrifícios e privações têm gerado ao povo brasileiro, mediante o aval do Executivo, pretende-se agora quebrar definitivamente o sentido de soberania nacional eo da independência dos Poderes, com a investigação do Judiciário por especialistas da ONU, medida que somente será alcançadase a Constituição Federal em vigor for solenemente desprezada.

É surpreendente que a ONU, exemplo eloqüente de fracasso na condução da política internacional de paz e segurança entre as nações, queira interferir exatamente em questões internas dos países economicamente fracos, mas não tenha a mesmafirmezaquando o assunto envolve a quebra da soberania destes entes e a falta de observância do princípio da autodeterminação dos povos.

Em respeito aos direitos humanos violados por força da interferência de uma nação sobre outra, é imprescindível a adoção de medidas para eliminar o regime de campo de concentração imposto aos presos de guerra em Guantanamo, para dar segurança ao povo árabe, ao povo judeu e aos próprios técnicos da ONU que ali se encontram. É preciso, pois, mudar os rumos e proteger os milhões que hoje são oprimidos pela força do imperialismo econômico, político e militarde alguns países.

Os juízes consideram positiva a preocupação da ONU com os direitos humanos e a sua garantia em todos os países. Também consideram importante que esta preocupação se estenda a todos os signatários de sua Carta e que exista um interesse internacional com a condução destas políticas. Todavia, não podem aceitar a que a representante, demonstrando ignorância e desconhecimento do ordenamento jurídico nacional, transfira aos juízes a responsabilidade pelo anacronismo da legislação.

A responsabilidade de aplicar a lei numa sociedade marcada por profunda desigualdade é do Poder Judiciário, e disso os juízes bem sabem e têm desempenhado essa função, por vezes com sacrifício da própria vida. Todos os pontos levantados referem-se a lacunas na legislação, que não é produzida pelo Poder Judiciário, se é que a digna representante da ONU desconhece este fato.

Não é de hoje que os juízes, por suas associações de classe, buscam modificar a legislação, para tornar mais efetiva a atuação do Poder Judiciário, iniciativa que não tem encontrado eco nos demais Poderes da República. Continuamos a esperar por uma reforma profunda na legislação infraconstitucional, que torne efetiva a jurisdição e possibilite ao Poder Judiciário propiciar segurança aos cidadãos e paz social.

Quanto à postura do governo brasileiro, nada surpreende, considerando que nenhuma iniciativa concreta de cunho social foi apresentada para resolver o problema da crise econômica, maior responsável pela violência que assola o País. Ao contrário, a opção é clara pela continuidadeda política neoliberal e geradora de desemprego. Daí a transferir a responsabilidade para o Poder Judiciário é tarefa fácil.

A reforma do Poder Judiciário deve ser feita pelo povo brasileiro, com a alteração profunda do modelo equivocadoainda vigente para dar lugar à plena democratização do seu exercício e de acesso, além da criação de mecanismos eficazes para extirpar quaisquer mazelas existentes, internas e externas. Enquanto não for aprovada a alteração constitucional, devemos utilizar os instrumentos disponíveis, com todo o rigor previsto, indicando, de maneira clara e objetiva, a responsabilidade de cada poder através das omissões e ações perpetradas contra a sociedade brasileira.

Grijalbo Fernandes Coutinho

é juiz do trabalho e presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra).

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