Introdução

Possivelmente, em face dos antecedentes do partido político a que pertence o presidente da República eleito, teremos um amplo debate nacional sobre a necessidade de implantação de um pacto social no Brasil.

As reflexões apresentadas, a seguir, constituem-se em roteiro inicial aos interessados, com vista a ponderar sobre tão delicado e difícil tema.

A comunidade jurídica brasileira estará às voltas, ao que parece, já em 2003, com o desafio de apresentar proposições concretas que possam dar elementos à concertação/pacto social que está para acontecer.

A indagação que todos teremos de fazer é se estamos, efetivamente, preparados para enfrentar essa grande e desconhecida revolução do negociado sobre o legislado.

A concertação social

Um aspecto importante a mencionar é que se usam dois termos, quando se fala sobre esse tema, que não possuem sentido exatamente igual. Tratam-se dos vocábulos concertação social e pacto social.

O sentido de concertação social “indica o procedimento negocial que visa à obtenção de um pacto social em sentido próprio. O pacto social, como resultado colimado pelas tratativas entre os grandes atores sociais, pode eventualmente não ser alcançado ou mesmo não chegar a ser formalizado. Isso não descaracteriza a concertação social como um procedimento que se justifica em nome de sua obtenção” (FREITAS JR, Antônio Rodrigues. Conteúdo dos pactos sociais. São Paulo: LTr, 1993. p. 25).

Já para Efrén Córdova, situa-se a concertação na “participação das forças fundamentais da sociedade civil na definição das grandes linhas da política social do governo e na fixação dos grandes parâmetros da negociação coletiva” (Pactos sociais: experiência internacional, tipologia e modelos. São Paulo, MTb ? IBRART, 1985. p. 14).

Já o pacto social pode ser entendido como “uma prática de política social e econômica que vem sendo adotada em diversos países para enfrentar importantes problemas nacionais que, nas diferentes sociedades, são das mais diversas naturezas, desde as dificuldades decorrentes de uma crise ou depressão econômica até a forma de enfrentar as conseqüências de uma situação de bonança” (ALVAREZ, Oscar Hernandez. O Pacto Social na América Latina. São Paulo: LTr, 1996. p. 26).

A concertação social seria um processo, enquanto os pactos sociais seriam os acordos básicos que resultam de discussões e contratos (que podem ou não advir de um sistema de concertação social), como diz Cassio Mesquita Barros, asseverando que “o foro onde o sistema de concertação social se desenvolve é muito informal e até pode não existir“, sintetizando que, embora historicamente distintos e formalmente diferentes, pactos sociais e concertação social “constituem um mesmo grande exercício de diálogo e de negociação das forças fundamentais da nação” (Pacto social e a construção de uma sociedade democrática. Revista LTr. Vol. 52. n.º 3. março de 1988. p. 283).

Pré-requisitos, elementos ou pressupostos

Alguns critérios são básicos para que seja deflagrada a concertação com o sentido de ser conquistado um pacto social.

Esses critérios antecedentes são chamados, por alguns, de pré-requisitos (Amauri Mascaro Nascimento), por outros, de elementos, e por diversos, ainda, de pressupostos (José Augusto Rodrigues Pinto). Por isso aglutinamos as três expressões que conduzem a um sentido único.

Para sua implantação, o pacto social deve atender alguns pré-requisitos, dentre os quais, na lição de Amauri Mascaro Nascimento, podem ser mencionados os de ordem: “a) psicológica, disposição da maioria em encontrar fórmulas pelo consenso; b) política, aceitação do diálogo pelos partidos políticos; c) econômica, a reformulação da economia do País, visando o seu melhor desempenho, diante dos desafios que enfrenta” (A política trabalhista e a nova república. São Paulo: LTr, 1985. p. 36-37).

Tomando a liberdade de reunir os chamados elementos de Cassio Mesquita Barros, com os pressupostos de José Augusto Rodrigues Pinto, podemos dizer que integram a trívia de pacto social: 1) uma ação política, considerada a atuação do poder, visando determinados objetivos, por considerá-los fonte de governo (elemento/pressuposto político); 2) o consenso, operando o renascimento dos contratos, refletindo vontades convergentes para enfrentar situações críticas (elemento/pressuposto volitivo); 3) objetivo de atingir a estabilidade econômica, vale dizer, o combate da recessão, da inflação e do desemprego (elemento/pressuposto finalístico) ? (BARROS, Cassio Mesquita. Pacto social e a construção de uma sociedade democrática. Revista LTr, vol. 52, nº 03, março de 1988. p. 282-283; PINTO, José Augusto Rodrigues. Direito sindical e coletivo do trabalho. São Paulo: LTr, 1998. p. 197).

A questão crucial, o nó górdio a ser desatado, está no pressuposto inicial de partida a essa fundamental discussão.

Um autor de nomeada entende que, no Brasil, o “pacto social passa obrigatoriamente pela reforma tributária na qual se busque ampliar o universo dos contribuintes, com carga tributária menor e melhor distribuída“. Porque, diz esse mesmo doutrinador, “Enquanto isso não acontecer, não haverá clima no Brasil para pacto social. O empecilho maior para a flexibilização está no próprio governo, que, ávido de receita, penaliza o sistema produtivo, retirando-lhe a competividade” E diz, por fim, esse escritor: “Relega ao oblívio que o sistema produtivo é espécie de galinha dos ovos de ouro` e que não se pode penalizá-lo sem que isso reflita sobre toda a população com a alta do custo de vida, com o desemprego e com o desprestígio do social como um todo” (OLIVEIRA, Francisco Antonio de. Da terceirização e da flexibilização como estágios para a globalização. Revista Genesis. janeiro de 1998. p. 61).

Dizemos nós, no entanto, que por mais importante que seja a reforma tributária (e nisso estamos de acordo com o eminente autor citado) há um pressuposto ainda antecedente: é a própria credibilidade do propositor, que deve ser alguém com muita aceitação no País, como o presidente da República. É ele quem deve ser o indutor (aquele que instiga, ou sugere), traçando as linhas gerais, apresentando diretrizes, convocando interlocutores válidos, e, mais do que isso, o avalista das propostas concretas apresentadas, como resultado de um amplo debate nacional.

Tarefa, como se sabe, hercúlea, ante as dimensões territoriais, e a enorme população brasileira, mas que não deve, e não pode, ser deixada para depois. O resto, embora imenso, deve ser enfrentado de imediato, sob pena de, mais uma vez, a frustração tomar conta de todos nós.

Objetivos

Refere Carlos López-Monis que em todo o pacto social persegue-se alguns dos seguintes objetivos ou todos eles, seja simultânea ou sucessivamente: “a) administrar de forma solidária uma situação de crise, procurando aumentar o crescimento econômico, a estabilidade de preços e salários e a redução nas taxas de desemprego; b) reformular o sistema de relações trabalhistas do País, introduzindo modificações de fundo no modelo de organização sindical, na regulamentação do direito de greve e na participação dos trabalhadores na empresa; c) fixar, com o maior grau de consenso possível, os princípios de um novo quadro de valores econômicos e sociais, a serem plasmados em um texto constitucional que inaugure uma nova etapa na vida do país” (Os pactos sociais na Espanha. Obra coletiva em homenagem ao Ministro Arnaldo Süssekind. Coordenação João de Lima Teixeira Filho. São Paulo: LTr, 1989. p. 114).

Tipologia dos Pactos

Existe uma grande variedade de tipos de Pactos, como os Pactos Sócio-Políticos, Pactos Sócio-Trabalhistas. Os primeiros, assinados por partidos políticos em períodos de transição da ordem política antecedendo uma nova Constituição, como o Pacto de Moncloa, na Espanha, os segundos, contendo diversos tipos de cláusulas sociais e trabalhistas, consoante refere Amauri Mascaro Nascimento, explicitando que os últimos (Pactos Sócio-Trabalhistas) “subdividem-se, visto que são de tipo processual quando fixam um procedimento a ser observado; de tipo normativo-substantivo, quando estabelecem parâmetros para as condições de trabalho a serem objeto de negociação em nível menor de convenções e acordos coletivos (ex., reajustamentos salariais entre 80% e 100%), ou, também, de tipo híbrido, com cláusulas processuais e substantivas” (A política trabalhista e a nova república. São Paulo: LTr, 1985. p. 36).

A natureza jurídica

O pacto social, de acordo com Luiz Carlos Amorim Robortella, constitui-se em “uma nova fonte de produção jurídica, qual seja, o direito negociado, gerando uma divisão de responsabilidade entre os parceiros sociais” (Os pactos sociais e os direitos humanos. Revista LTr. Vol. 52. N.º 4. Abril de 1998. p. 403).

Levando-se em conta a natureza jurídica dos pactos sociais em sentido próprio, Antônio Rodrigues de Freitas Jr. optou por considerá-los “contrato preliminar ou pactum de contrahendo (também chamado pré-contrato, processo de contrato, compromisso ou contrato preparatório)” (Conteúdo dos pactos sociais. São Paulo: LTr, 1993. p. 167).

Deve recordar-se que os pactos podem ser tanto formais como informais, e instrumentam políticas de objetivos sociais e econômicos, aproximando-se das convenções coletivas de trabalho, conforme Cassio Mesquita Barros, “mas com estas não se confundem, pois não estipulam condições de trabalho e não são firmadas entre empregados, empregadores ou suas organizações” (Revista LTr. Vol. 52, n.º 3. Março de 1988. p. 285).

José Augusto Rodrigues Pinto trata o pacto social como um dos instrumentos da negociação coletiva, em plano igual ao da convenção coletiva ou do acordo coletivo de trabalho, distinguindo as duas figuras, apenas, em dois fatores: “1. Subjetivo, pois o Pacto Social é, necessariamente, trilateral, em virtude da presença do Estado, enquanto a Convenção Coletiva e o Acordo Coletivo de Trabalho são bilaterais, em vista de só comportarem a intervenção das associações sindicais representativas das categorias ou da associação sindical profissional e de empresa ou empresas, respectivamente. 2. Objetivo, pois o Pacto Social, ao reverso da Convenção ou do Acordo Coletivo de Trabalho, não visa a estipular diretamente condições de trabalho, senão a concertar vontades política, profissional e econômica, no sentido de estipular condições para a criação de normas, por via imperativa legal ou profissional” (Direito sindical e coletivo do trabalho. São Paulo: LTr, 1998. p. 195).

As experiências da Itália e Espanha e os requisitos

Após investigar duas das experiências jurídicas em que a concertação veio a ser praticada ? Itália e Espanha ? observa Antônio Rodrigues de Freitas Jr. alguns requisitos que não estavam à época (em que se escreveu o livro) presentes na realidade brasileira, mas poderiam estar agora (como dizemos nós), e que são, de forma resumida, os seguintes: “1) renúncia, por parte das autoridades governativas, à prática de medidas jurídicas emergenciais de impacto ou de confecção sigilosa (…); 2) repartição de certa esfera de poderes decisórios próprios aos Poderes Públicos, entre os protagonistas sociais; 3) pleno reconhecimento da autonomia coletiva aos grupos sociais; 4) constituição de organismos de intermediação de interesses sociais, à altura de conferir vinculação e efetividade aos compromissos resultantes da concertação; e 5) ponderável `equilíbrio de forças’ entre os antagonistas sociais” (Conteúdo dos pactos sociais. São Paulo: LTr, 1993. p. 168-169).

A eficácia

Não há qualquer dúvida que no pacto social se pretende a intervenção de todos os atores sociais representativos com a finalidade de aclarar e encontrar soluções conjuntas para os problemas econômicos e sociais, e isso não é nada fácil, tratando-se de um país com cento e setenta e cinco milhões de pessoas.

Há, por outro lado, uma carência de diálogo, de interlocutores válidos para conduzir as propostas, que surgem na base social, até o debate e a solução, ou, pelo menos, o encaminhamento.

Saliente-se, como já fez Dinaura Godinho Pimentel, que os países nos quais “se adotou o modelo fundado na concertação ou na negociação social, mostraram-se mais capazes de resistir à crise econômica e de resolver os problemas de governabilidade`, nas palavras de Regini, que se refere à Grã-Bretanha, no período do contrato social (1974-1979), à Itália, França, Espanha e Grécia, entre outros” (A importância do pacto social. Revista LTr. Vol. 53. N.º 2. Fevereiro de 1989. p. 140).

E essa mesma autora salienta, citando Zangari, “que o êxito do pacto social pode provir `somente da retomada da relação democrática entre o vértice e a base sindical’, quando passará a ser possível reconhecer a autenticidade das decisões tomadas nos processos de concertação ou de negociação social” (ob. e p. cit.).

Conclusões

Nesta nossa modesta reunião de idéias, à guisa de conclusões, lembramos dois pensamentos, de autores que se debruçaram sobre o tema, e que são indispensáveis para refletir no momento em que o sonho depara-se com a realidade.

Segundo Antônio Rodrigues de Freitas Jr., “Como ocorre nos demais negócios jurídicos, o conteúdo dos pactos sociais adquire reconhecimento e tutela jurídicos à proporção em que sejam resultantes de deliberada e convergente manifestação de vontade entre os sujeitos envolvidos. Jamais por desejo do intérprete, nem tampouco por decisão do Príncipe” (Conteúdo dos pactos sociais. São Paulo: LTr, 1993. p. 169).

Por outro ângulo, Luiz Carlos Amorim Robortella, com apoio em Amauri Mascaro Nascimento, leciona que: “O conteúdo democrático dessa política de concertação social parece evidente, na medida em que pode atenuar a devastadora influência do poder econômico nas decisões superiores do Estado e até mesmo limitar a esfera de arbítrio dos órgãos de governo, em atenção aos princípios do pluralismo social, da liberdade dos grupos e do predomínio da vontade geral” (Os pactos sociais e os direitos humanos. Revista LTr. Vol. 52, n.º 4. Abril de 1988. p. 403-404).

Enfim, não se pode ter medo de buscar soluções reclamadas pela maioria do povo brasileiro. Se dificuldades existem, a dinâmica da esperança deve ultrapassar a estática do medo, como um dos autores desse artigo já alinhavou: “Medo de mudar/ não muda nada/ A mudança dá/ medo mesmo/ Medo de ter medo/ para tudo ficar igual/ Ou se tem medo/ só para não mudar?/ Quem mede o medo/ Fica sem mudar/ Para tudo ficar igual/ o medo é mudar” (Luiz Eduardo Gunther, em 21.10.02).

Luiz Eduardo Gunther é juiz no TRT da 9.ª Região.

Cristina Maria Navarro Zornig é assessora no TRT da 9.ª Região.

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