A imperiosa necessidade da defensoria pública

Com o advento do novo governo do Estado do Paraná, muito está a se falar, ultimamente, na reativação do convênio com a OAB, objetivando a prestação de serviços advocatícios aos beneficiários da Justiça gratuita.

A experiência passada não foi das boas. Pelo que se tem de informação, a dívida do Estado para com a OAB, decorrente dos atendimentos realizados em razão do antigo convênio no governo anterior, até a presente data, ainda, não foi saldada.

Contudo, não se trata dessa questão. Ainda que o governo anterior tivesse honrado o convênio do Estado com a OAB não seria de se retornar à aludida prática. O propalado convênio teria por finalidade a gratuidade dos serviços prestados às pessoas que necessitem recorrer ao poder judiciário e não têm condições para arcar com as custas, com as tais cominações legais, com as taxas e os emolumentos e mais, ainda, os pró-labores e honorários advocatícios. Em que pese os fins altruísticos, não se há alinhar com a frase atribuída a Maquiavel de que o fim justifica o meio (il fine giustifica i mezzi). O fim não justifica os meios (na verdade, na verdade, os meios é que justificam o fim. “… O que justifica realmente o fim, os esforços e os sacrifícios feitos por ele, são os meios: …” – Milovan Djilas -). É que, considerando-se o fato de que as pessoas carentes seriam beneficiadas, numa pretensa facilitação de seu acesso à justiça, com a prestação da assistência judiciária gratuita, realizada via convênio, fica a aparência de um objetivo, de um fim, merecedor de aplauso e aprovação.

Com o maior respeito aos que defendem a reativação do convênio do Estado com a OAB, visando por conseqüência a Justiça gratuita, é de se patentear, data venia, que semelhante empreitada padece de ilegitimidade.

Por que uma atuação com objetivos tão nobres padeceria de ilegitimidade?

Primeiro: porque, cabendo ao Estado a prestação da assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos (art. 5.º, inc. LXXIV da CF), haveria que se estruturar a condição apropriada para tal finalidade, oportunizando ao Estado o exercício da fiscalização direta em tal estrutura de modo a proporcionar o cumprimento de metas preestabelecidas e da perfeita realização das funções de cada um de seus agentes (agentes esses aprovados em concurso público de provas e títulos). O convênio do Estado com a OAB não proporcionaria essa intervenção direta do Estado nos trabalhos dos advogados alistados ou conveniados.

Segundo: porque, grosso modo, estar-se-ia ferindo o princípio da isonomia. É que o Estado, através do Ministério Público, dá, fornece, propicia, gratuitamente, a acusação daqueles que, supostamente, infringiram a norma (é o esforço na busca, na realização, do Ius Puniendi). Ora, ora, assim sendo, o Estado, da mesma forma, deveria prover a Defesa. Cuida-se, especialmente se se lançar a visão de um observatório gauche, de uma questão de igualdade de tratamento que, mais ainda, se vê agredida quando essa dita acusação, por meio da Instituição do Ministério Público, é desenvolvida tanto em prol dos pobres quanto em prol dos ricos que possam ter sofrido, encontrando-se na condição de supostas vítimas, qualquer tipo de violência da parte daqueles que, com a acusação manifestada, de início, na denúncia ministerial, se vêem na condição de réus. Se, principalmente, na esfera penal, não se possibilitar a Defesa gratuita, através da Defensoria Pública para os acusados pobres e, na esfera cível, a possibilidade de acesso ao judiciário para o atendimento das pretensões dos menos aquinhoados, não se poderá propiciar acusação gratuita contra aqueles que possam ter ofendido, que possam ter agredido vítimas ricas. Não se acene com o argumento de que, sendo caso de ação penal pública o Ministério Público teria o dever de realizar a persecutio criminis, almejando a concretização do direito de punir do Estado, quer sejam as pretensas vítimas pobres ou ricas. As vítimas ricas, então, vistas do tal observatório gauche (porque só pode ser de um observatório gauche que o Estado tem lançado os seus olhos para a importante questão da qual ora se fala), deveriam arcar com os ônus todos da acusação, inclusive os pecuniários, por si mesmas ou por seus familiares ou herdeiros (em caso de morte). E não é sempre que isso acontece, sendo que o custus legis corre, em todo o tempo e em todo o processo, por conta exclusiva do Estado. Aqui e ali é que se pode anotar uma assistência ao Ministério Público. Guardadas as características, a Defensoria Pública é uma Instituição tal qual o Ministério Público. A par disso tudo se some o fato de que há outra grande desigualdade: ao passo que os integrantes do Ministério Público são escolhidos em rigoroso concurso público de provas e títulos e, portanto, bem credenciados ao desempenho da função como aptos para o dever de bem atuar no pólo da acusação, os alistados no convênio não teriam outra exigência que não a de se encontrar, regularmente, inscritos, pura e simplesmente, nos quadros da Ordem. É que raramente (ou nunca) se vê os nomes dos grandes advogados, o nome dos mais conceituados e experientes profissionais da OAB, integrando a lista de conveniados que em sua maioria é composta de iniciantes recém saídos dos bancos escolares, como se não bastasse o fato de que a acusação, na verdade, é entregue a uma Instituição do porte, da magnitude do Ministério Público e a Defesa fica por conta de um ente, de um profissional isolado na sua individualidade e, quando não, às vezes, pertencente até a um grupo (ou bloco) que acaba elaborando um jogo de privilégios. Formam-se o que, vulgarmente, se denomina de panelas. Não são dados a conhecer os critérios todos da distribuição de causas aos listados pelo convênio. Também, não se venha dizer que os integrantes dos quadros da Ordem, igualmente, passam pelo exame da Ordem. Esses exames da Ordem por mais severos que tenham sido não se podem equiparar, nem de longe, aos concursos públicos exigidos para o ingresso na Instituição do Ministério Público. São, inegavelmente, exames mais lights nos quais se faz, apenas e, superficialmente, uma avaliação com o fito, não de se mergulhar a fundo na capacitação integral do candidato, mas de sopesar, unicamente, uma noção. O que se avalia no exame da Ordem é a noção geral (sic) do candidato sobre os problemas profissionais que ele poderá enfrentar e ter de resolver. Nos concursos públicos de provas e títulos para o preenchimento de vagas na Instituição do Ministério Público, consoante já se disse, o que está em jogo é a capacitação profissional do candidato, é a sua competência pessoal, a sua capacidade de trabalho e até a sua vocação e não, tão somente, a sua noção. Não se está a bajular o Ministério Público. Está a se fazer uma análise de uma situação real, partindo-se de uma visão crítica, sem dúvida, demonstrando a diferença entre a acusação e a Defesa com sensível prejuízo para os defendidos, para os acusados.

Terceiro: porque, mesmo que os integrantes da lista do convênio do Estado com a OAB fossem profissionais capacitadíssimos, é de se recepcionar, conforme de certa forma já se registrou, a progênie da Constituição Federal, de 1988, que reza ser DEVER do Estado a prestação de assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos (art. 5.º, LXXIV, da CF) pelo que se lhe impõe a criação e instalação da Defensoria Pública com preenchimento de vagas, em todas as Comarcas, através de rigorosos concursos públicos de provas e títulos. A partir do momento no qual a Carta Magna, a CARTA MAIOR, reconheceu o DEVER do Estado, IMPONDO a ele, Estado, o ônus da assistência judiciária através da Defensoria Pública, acabou a lei 1.060/50 no que se refere à atuação gratuita dos advogados (e até a qualquer tipo de convênio que mal pagam os profissionais). Nesse particular, os dispositivos da lei pertinentes à espécie foram derrogados. “A Defensoria Pública é instituição essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados, na forma do artigo 5.º, LXXIV.” (Cf. art. 134 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL, grifos e destaques em negrito de nossa lavra). Vale dizer, que o Judiciário não poderá existir sem que o Estado viabilize a Defensoria Pública, pois que ela, a Defensoria Pública, é instituição essencial à função jurisdicional do Estado e, assim sendo, o juiz de direito, em nenhuma hipótese, poderá nomear, diretamente, advogado dativo para atuar, porque, sem Defensoria Pública, a sua função jurisdicional não existe, é uma ficção, principalmente, no que concerne, à nomeação dativa de advogados, de forma direta, por despacho nos autos, exarado por simples cota. Também, no mesmo sentido, nenhum convênio entre Estado e OAB, por mais bem intencionado que possa ser, poderá suprir a falta da Defensoria Pública. É que a função jurisdicional, nos precisos termos do texto constitucional não poderá existir sem a Defensoria Pública (é bom bater bem nesta tecla), ainda mais se se considerar o fato de que esse dispositivo constitucional é auto-aplicável porque, conforme se pode ver da transcrição supra, ele é vazado na forma do artigo 5.º, LXXIV, que por estar no título II que trata dos Direitos e Garantias Fundamentais, tem aplicação imediata vez que: “As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata” (Cf. § 1.º do art. 5.º da Constituição Federal). Em que pese a existência da LC. 80/94 que organiza a Defensoria Pública da União, prescrevendo normas gerais para a sua organização nos Estados, derivando do que se acabou de ver, a Lei Complementar existente estaria dispensada pois, repita-se, “As normas definidoras dos direitos e garantidas fundamentais têm aplicação imediata” (Cf. § 1.º do art. 5.º da CF). Todavia, tanto melhor que já se disponha de Lei Complementar adequada para a criação da necessária Defensoria Pública nos Estados que até agora não a criaram. A existência desse dispositivo legal evidencia que a não criação da Defensoria até agora foi pura falta de vontade política.

Não é sem razão que, Luiz Flávio Gomes, num dos seus inspirados artigos, com configuração de uma carta aberta a Sua Excelência o Senhor Ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, assim aconselhou: “Apóie firmemente a incansável luta da Defensoria Pública brasileira. Conceda-lhe a sonhada carta de alforria, porque jamais teremos uma Justiça séria e eficiente sem a presença de defensores públicos em todas as Comarcas do País.”

Vale dizer que, aonde não exista Defensoria Pública, não se tem Justiça séria e eficiente. O Estado do Paraná, entre outros Estados que não têm a Instituição da Defensoria, sempre se bateu por uma Justiça séria e eficiente. O Poder Judiciário do Estado do Paraná, salvante exceções solitárias que não podem servir de referência, é integrado por magistrados probos, altaneiros, capazes, sérios, sóbrios e eficientes, sem dúvida. Entretanto, esse mesmo Poder Judiciário na sua condição de Poder de Estado, ressente-se da falta da necessária complementação para que alcance a plenitude, para que levante o vôo do albatroz, a ave dos oceanos, cantada nos versos do vate sagrado Castro Alves: a Defensoria Pública.

E isso porque sem ela, sem a Defensoria Pública, no dizer do artigo 134 da Constituição Federal, já citado, não se tem jurisdição. Inexistindo jurisdição (é importante tornar a bater – bata-se à exaustão- na mesma tecla), não existem juízes, instâncias, entrâncias, ações, processos, decisões… Tudo o que se pense existir nesse sentido, sem a criação da Defensoria, é um factóide, uma ficção.

Um Estado sem jurisdição não é um Estado, porque, entre outras funções como a de dizer o direito e ser emanação da soberania, a jurisdição é elemento de inclusão social, gerador de cidadania. Jônatas Luiz Moreira de Paula, jovem e brilhante professor da Universidade Paranaense, Unipar, destacando a importância da jurisdição como elemento de inclusão social, assevera: “…Para a transformação social, que muito se procurou debater neste trabalho, é preciso que a jurisdição tome uma postura para fiel cumprimento do artigo 3.º da CF. Nesse diapasão, é preciso que a jurisdição faça a opção pelo interesse social, e não pelo `interesse do Estado’, que não passa de mero interesse do governo, que é transitório e enquanto aquele é permanente” (2).

Concordando com toda essa linha de raciocínio, Pascoal Muzeli Neto, outro jovem e talentoso professor, também da Universidade Paranaense, Unipar, assenta em suas palestras que a Defensoria Pública é um dos segmentos que abre as portas para a carreira dos denominados “agentes de Estado”, os defensores públicos, de responsabilidade exclusiva do poder central da administração estatal pelo que a sua não criação implicará em crime de responsabilidade.

A não criação da Defensoria Pública é e continuará sendo um descaso. Esse descaso implica em crime de responsabilidade do sr. governador do Estado que deverá responder de conformidade com a lei, além do que, o próprio Estado também é passível de ser acionado porque se tornou, com a não criação da Defensoria Pública, num Estado malsão, num Estado sem jurisdição, sem cidadãos e sem cidadania (conquanto seja a jurisdição fator de inclusão social). Espera-se que o novo governador, dr. Roberto Requião, com a sua sensibilidade política, a sua visão de estadista e a sua formação de bacharel em Direito não caia no mesmo erro dos seus antecessores.

Concluindo:

1.- O governador do Estado que não instituir a Defensoria Pública deve responder por crime de responsabilidade, nos termos da lei;

2.- O Estado faltoso deve ser acionado, cabendo, salvo melhor juízo, ao Ministério Público a propositura da ação competente contra o Estado e contra o governador;

3.- Nos termos da Constituição Federal, a Defensoria Pública é conditio sine qua non, é instituição essencial à função jurisdicional do Estado, devendo ser criada, instalada e posta para funcionar in continenti, sob pena de comprometer a atuação dos agentes da jurisdição;

4.- Ao Estado cabe o ônus, o DEVER e a responsabilidade de arcar com a prestação da assistência jurídica, integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos (art. 5.º, LXXIV da C.F.) e não se deve tentar tapar o sol com a peneira na realização de convênios que carecem de legitimidade. Os convênios da OAB. com o Estado não solucionam o problema e, data venia, são verdadeiros entraves à criação da Defensoria Pública (sob o pretexto da existência dos tais convênios, deixa-se de criar a Defensoria), comprometendo a função jurisdicional do Estado, não passando de simples paliativos no que concerne à complexidade da questão. Advogados acabam por trabalhar, acreditando no cumprimento do convênio pelo Estado, sem nada receber. O Estado tem sido mau pagador e, como sempre, tem deixado de honrar o seu compromisso. Executar o Estado é ilusão vez que a fila dos precatórios não tem fim. Num ou noutro caso até pode acontecer de uma execução ser bem sucedida contra o Poder Público, contudo, na maioria dos casos, é risco n’água. Por isso tudo, a OAB, Instituição histórica, que se fez grande pelas Defesas das grandes causas, deve se bater pela criação e instalação da Defensoria Pública, nos moldes da lei e rechaçar as propostas de convênio.

NOTAS:

(1) GOMES, Luiz Flávio. Uma nova e moderna Justiça. O Estado do Paraná, caderno Direito e Justiça, 1.ª. p., domingo, 19 de janeiro de 2003 -grifos e destaques em negrito inexistentes no original.

(2) PAULA, Jônatas Luiz Moreira. A jurisdição como elemento de inclusão social. Barueri (SP): Editora Manole Ltda, 2002, p. 166, § 4.º, grifos e destaques em negrito inexistentes no original.

José Bolivar Bretas

é advogado criminalista em Assis Chateaubriand, PR., há 30 anos.

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