A ilegalidade em Guantánamo

Se há uma questão que deveria incomodar os países democráticos, essa refere-se à manutenção em Guantánamo de prisioneiros capturados pelos americanos no Afeganistão e no Paquistão desde o final de 2001. Recentemente, o jornal espanhol El País publicou interessante artigo do professor José Miguel Oviedo, intitulado “Guantánamo, um paraíso legal?”.

O questionamento a propósito da situação legal desses prisioneiros, acusados de estarem vinculados ao grupo Al-Qaeda, começou a repercutir de forma mais intensa, não só na Europa, como nos Estados Unidos. A rede de televisão norte-americana ABC focalizou o tema e o analisou a fundo, suscitando a obrigatória reflexão. Diversas entidades de direitos humanos têm levantado vozes contra o desrespeito ao mais elementar direito de qualquer preso: conhecer a acusação e a lei aplicável.

Coincidentemente, apenas no último mês de julho, a Suprema Corte dos Estados Unidos decidiu que os detidos em Guantánamo poderiam recorrer aos tribunais americanos a fim de questionar a sua posição jurídica. O governo americano criou um sistema denominado “revisão do estatuto do combatente”, composto por militares sem envolvimento direto com a captura dos prisioneiros, para apreciar a situação dos presos. Enquanto as convenções de Genebra partem da presunção de maior proteção para o prisioneiro, no sistema americano é o reverso, pois “o Estado presume que o combatente detido é inimigo e esperam que ele prove o contrário”, como assinalou ao Washington Post Wendy Patten, da Human Rigths Watch, o maior grupo americano de defesa de direitos humanos.

Os Estados Unidos da América, que têm liderado campanhas em respeito a tais direitos, não poderiam enfrentar maior contradição do que a manutenção dessa flagrante ilegalidade em relação aos prisioneiros.

Vale lembrar que a base naval de Guantánamo, na baía do mesmo nome, foi estabelecida em 1898, quando os americanos obtiveram o controle de Cuba no fim da guerra hispano-americana. Ainda que independente (1902), Cuba foi pressionada e permitiu a conservação em seu território da base naval, mediante acordo firmado em 1903 e um tratado de 1934. A missão primordial da Baía de Guantánamo é servir como base estratégica da logística para a Marinha americana no Atlântico. A presença na ilha há mais de um século é um espinho cravado na alegada soberania nacionalista de Fidel Castro, embora, a nenhum dos dois países convenha chamar a atenção sobre a base fortemente armada.

Inesperadamente, o mundo lembrou de Guantánamo, quando os Estados Unidos, em sua campanha mundial antiterrorismo, escolheu o local como reduto para aprisionar aproximadamente 600 homens capturados e considerados combatentes inimigos ou integrantes de exércitos terroristas que ameaçam a paz universal, em especial a dos americanos. Por que a escolha de Guantánamo?

É óbvio que além da questão da segurança, da distância e do absoluto controle militar na área, há uma razão legal prioritária: Guantánamo é um território de ultramar, com autoridade norte-americana, onde o sistema normativo é aquele emanado do comando das tropas ali estacionadas. Que local é esse? Trata-se de um limbo jurídico a permitir o completo domínio americano sem a necessária reserva de direitos, onde é possível deter indefinidamente pessoas, sem acesso a defensores, advogados ou familiares. Este limbo chegou a ser comparado pelo secretário de Defesa Donald Rumsfeld a um verdadeiro paraíso, em que os prisioneiros gozavam de um “bom clima”, “celas apropriadas” e “trato humano”. Na verdade, as condições vividas pelos detidos são duríssimas, as celas são mínimas, a luz não se apaga, as saídas para o exterior são mínimas ou inexistentes, não há autorização para o envio ou recebimento de correspondência e, o que é ainda pior, não se sabe qual a situação legal dos presos, porquanto, se não são considerados prisioneiros de guerra, não estão sujeitos às leis de guerra (p. ex., sob a 3.ª Convenção de Genebra, as pessoas capturadas no Afeganistão devem ser tratadas como prisioneiros de guerra). Todavia, se não são prisioneiros de guerra, o que são? Criminosos comuns desprovidos de qualquer proteção legal? Se os presos são terroristas, por que não são julgados como tais?

Sabe-se que dos detidos apenas três presos foram formalmente acusados, e outros 147 com passaportes britânicos, franceses e australianos, “extraditados”, mediante exaustivas gestões de seus países. Com certeza, somente por estarem na hora e no local errados, alguns foram feitos prisioneiros e “vivem” a absurda circunstância. Centenas de pessoas consideradas suspeitas estão enjauladas sem acusação formal ou direito à defesa. É inconcebível que uma nação com a história dos Estados Unidos mantenha esse acampamento de presos. A bem ver, Guantánamo é um campo de concentração, cujos prisioneiros cumprem penas indefinidas e kafkianas. A recusa dos Estados Unidos para obstruir a revisão judicial por cortes americanas da legalidade das detenções é inaceitável. Não há modelo jurídico preestabelecido para ser aplicado aos detentos.

Seguramente, há terroristas entre os prisioneiros. Porém, quantos serão os inocentes? Nenhuma nação deve ficar inerte diante de ações terroristas, mas será este o preço dessa “guerra justa”, ou cruzada antiterrorismo? Não há dúvida que a persistência desses fatos em Guantánamo abala a história do sistema jurídico norte-americano. A abdicação de princípios morais é injustificável em qualquer hipótese. Por isso, constata-se, tristemente, a perda da batalha pela defesa dos direitos humanos, além de não se vencer a luta contra o terror.

Rui Celso Reali Fragoso, advogado, foi presidente do Instituto dos Advogados de São Paulo.

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