A “Expansão do Direito Penal”

A polêmica acerca da mo- dernização do Direito Penal constitui uma das mais relevantes discussões científicas jurídico-penais da atualidade acerca dos fundamentos do Direito Penal, e isso pode ser atribuído, ao câmbio de perspectiva a que se vê obrigado. Equivale a dizer, o Direito Penal clássico, idealizado para proteger bens jurídicos altamente pessoais e o patrimônio, estritamente vinculado à princípios e garantias, é forçado, ante à proliferação de novos bens jurídicos, decorrentes do avanço tecnológico experimentado pela sociedade pós- industrial, à flexibilização de certos conceitos, de regras de imputação, assim como à revitalização de princípios político-criminais de garantia. O conjunto de fenômenos sociais, jurídicos e políticos implicados neste processo gerou um acúmulo de efeitos para o Direito Penal, a que se tem denominado como processo de “expansão do Direito Penal”.(1))

O Direito Penal, como instrumento de proteção de bens juridicamente tutelados, vitimado pelo processo de expansão, depara-se com a aparição de novos bens jurídicos, resultantes de causas diversas e que, normalmente, derivam de realidades até então inexistentes. Verifica-se também, a deterioração de realidades tradicionalmente abundantes e que agora passam a ser escassas (como é o caso do meio ambiente), bem como a valorização de certos bens jurídicos já conhecidos.

Além da já mencionada proliferação dos bens jurídicos, há que se destacar a utilização de novas modalidades delitivas que se projetam pelos espaços abertos pelas novas tecnologias (a exemplo da internet e, consequentemente, a cyberdelincuencia), o que proporciona o desenvolvimento e o incremento de novas formas de criminalidade organizada.

Portanto, em consonância com a ponderação de SILVA(2), pode-se afirmar, com segurança, a existência de um espaço razoável para a expansão do Direito Penal. Tal processo, induz a uma mudança de perspectiva que orienta o Direito Penal à proteção de bens jurídicos cada vez mais genéricos, o que conduz à apreciação de dimensões estruturais de caráter global ou sistêmico, e faz com que o Direito Penal, que antes relacionava à posteriori, ou seja, depois de ocorrido o delito, converta-se em um Direito de gestão de riscos, e, conseqüentemente, mais administrativizado. Por esta razão, a sociedade moderna pós-industrial é, correntemente, denominada “sociedade de risco”, uma vez que o desenvolvimento tecnológico e a dinamicidade dos fenômenos econômicos expõem os indivíduos, integrantes do corpo social, a ameaças que podem ser provenientes das decisões tomadas por outros cidadãos, quando do emprego de certos meios tecnológicos, bem como derivar do processo de marginalização que esta nova sociedade implica em relação àqueles que não acompanham sua evolução e que, por esta razão, são percebidos pelos demais como potenciais fontes de riscos.

A noção de risco, tão em voga no presente momento, advém da união das condutas humanas que implicam em um risco e do perigo proveniente da técnica, o que faz com que a preocupação pelo domínio das condutas esteja voltada para o perigo gerado pelas mesmas, ou seja, o “domínio do risco” centra-se na capacidade humana de conter o risco de suas condutas que caracterizam o injusto. A problemática que surge em se tratando do “risco permitido” está, exatamente, em estabelecer o nível máximo de risco aceitável, tarefa a ser cumprida pelo Direito Administrativo, que é o encarregado de delimitar, normativizar e regulamentar todas as atividades que implicam em riscos socialmente relevantes.

Como conseqüência fundamental, verifica-se o adiantamento da resposta penal que, não mais espera a efetiva lesão ao bem jurídico, ao revés, considera a prevenção das condutas para a contenção de riscos, o que pressupõe a antelação da tutela penal. Portanto, o debate atual volta-se para a questão concernente ao “risco permitido”, o problema está em determinar qual é o risco máximo tolerável pela sociedade, trata-se de um problema de valoração jurídico-penal da ação, pelo que se impõe juízos eminentemente normativos.

Os traços da sociedade pós-industrial convergem para a caracterização de uma sociedade de objetiva inseguridade, em razão de não se conhecer com exatidão quais serão os danos que, efetivamente, poderão ser levados a efeito em razão da utilização das novas técnicas. Como exemplo pode-se citar os alimentos transgênicos, posto que se desconhece todos os efeitos que essa classe de produtos possa produzir, especialmente os que se verificam a longo prazo, por outro lado não se pode negar seus efeitos positivos. Pelo que, se pode dizer que o problema não está somente em individuar as ações humanas aptas à produção de riscos, também se há de identificar as ações daqueles que os distribuem.

Tudo isso, ilustra a complexidade em que se encontra inserida a sociedade pós-moderna, em que a intervenção das esferas da organização individual incrementa a possibilidade de que alguns contatos produzam resultados lesivos, e, em alguns casos, como no dos alimentos trangênicos, a produção destes resultados podem dilatar-se no tempo. A complexidade dos sistemas sociais conduz a uma importante mudança no sentido de que as condutas delitivas sejam levadas a cabo por coletividades de pessoas, geralmente organizadas, e não mais por pessoas individualmente consideradas. De qualquer modo, a situação que se verifica é de incertitumbre geral. Por esta razão, o processo de expansão do Direito Penal inclina-se muito mais no sentido dos delitos de perigo, dada a sua configuração abstrata.

Essa sensação de insegurança que atormenta a sociedade moderna é a responsável pela “fuga” ao Direito Penal, que o pressupõe como único mecanismo adequado para gestionar fenômenos, não exclusivamente penais, também aos sócio-políticos, aos que se costuma denominar “macroproblemas”. Como exemplo, coloca-se a questão meio ambiental ou a solução de problemas derivados da imigração massiva verificada em Europa nos últimos anos, esses problemas, certamente tem seus reflexos no Direito Penal, porém não se tratam de questões essencial ou exclusivamente penais. Portanto, o fato de que a sociedade considere o Direito Penal como único meio capaz de proporcionar uma resposta efetiva de modo a solucionar conflitos desta ordem, implica em uma carga demasiada excessiva para esse ramo do Direito, vulnerando, indubitavelmente, o princípio da ultima ratio.

É dizer, a sociedade experimenta um cambio de perspectiva relacionado ao modo de conceber o Direito Penal, no sentido de que os que antes o repudiavam, agora respaldam-se nele como meio de proteção de seus interesses. De uma concepção minimalista, passou-se a uma concepção maximalista do Direito Penal, de ultima ratio à prima ratio. Tal interesse resulta do descrédito em relação a outras instâncias de proteção, como a exemplo das normas morais, o Direito Civil e o Direito Administrativo.

A questão correspondente à globalização, é um aspecto fundamental relacionado à sociedade atual que não se pode deixar de mencionar, não somente pelo que representa para o processo de expansão do Direito Penal, mas também, porque se constitui em um processo que afeta a comunidade internacional. A redução dos limites, tradicionalmente, impostos pelos Estados, quando das operações econômicas com o exterior, promocionou o fomento e incremento da atividade e das transações econômicas internacionais, pelo que se operou a ampliação dos mercados já existentes, bem como o surgimento de novos mercados. Esse estreitamento de fronteiras permitiu, ademais da ampliação dos mercados, a expansão da criminalidade, pelo que é oportuna a observação de ZUÑIGA “las fornteras se abren no sólo para los ciudadanos, sino también para la delincuencia que aprovecha los canales del comercio internacional libre para moverse a sus anchas”(3).

Considerando-se que a globalização está dirigida, precipuamente, à atividade econômica, não se há de pasmar que a criminalidade associada à globalização desenvolva-se nesta área. É de bom grado ressaltar que a criminalidade no âmbito econômico não se manifesta de modo marginal, ao revés, manifesta-se como um fenômeno centrado em, conforme destaca SILVA: “elementos de organización, transacionalidad y poder económico”(4). É dizer, a criminalidade econômica relacionada à globalização é, via de regra, uma criminalidade empresarial organizada.

A criminalidade organizada, estruturalmente, tem dois pontos que merecem destaque, o primeiro refere-se ao sentido amplo que se quer dar à organização, ou seja, trata-se de instituições em que participam grupos de pessoas hierarquicamente estruturados, seja na forma de empresas, seja na forma estrita de organizações criminais. A dissociação entre a execução material direta e a responsabilidade a ser aportada aos integrantes destas organizações conduz ao fato de que o resultado danoso possa aparecer distanciado, no espaço e no tempo, da ação dos sujeitos mais relevantes no plano delitivo, o que possibilita a configuração da autoria mediata em alguns casos.

O segundo ponto de relevo, respeita à desestabilização dos mercados fruto da criminalidade organizada. Por esta razão, a criminalidade da globalização corresponde a uma criminalidade de sujeitos poderosos, e isto, não somente pela amplitude de seus efeitos econômicos, talvez muito mais por seus reflexos na política e no âmbito social, dada à sua capacidade de desestabilização dos mercados, bem como a seu poder de corrupção em relação aos agentes públicos.

Esse tema, permite-nos retroceder ao ponto referente ao constante estado de inseguridade que se observa na sociedade atual, no sentido de comprovar que esta sensação não se faz presente somente no plano subjetivo daqueles que integram o corpo social, senão que é conseqüência do avance tecnológico experimentado pela sociedade moderna pós-industrial. Para tanto, basta considerar os instrumentos tecnológicos de que dispõem as organizações criminais que atuam no âmbito internacional, para alcançarem seus propósitos delitivos. Bom exemplo disso é a internet, espaço aberto em que se movem ditas organizações, que permite a consecução de crimes das mais diversas ordens, e, se não torna possível a efetivação dos mesmos, em muito contribui para com seu sucesso. Cabe falar em inseguridade, por caracterizar-se, este espaço, como extremadamente amplo, acessível, de poderoso alcance e difícil de ser controlado, entre outras características que se lhe pode atribuir. Isso tudo nos leva a crer que esse meio de comunicação, apesar de sua imprescindibilidade e de sua inegável utilidade, está vulnerável às atividades das organizações criminosas. Como bem ponderou GIDDENS “algunas de las tendencias que se suponían harían la vida más segura y predecible para nosotros, incluido el progreso de la ciencia y de la tecnología, tienen a menudo el efecto contrario, especialmente las relativas a la economía electrónica globalizada”(5).

Esta nova sociedade, decorrente do desenvolvimento tecnológico, pode ser caracterizada como complexa, comunicativa, de risco, globalizada e em contínua transformação. Complexa, porque o delito está inserido no âmbito das sociedades organizadas; institucionalizada, no sentido de que as relações produzem-se na esfera da coletividade; comunicativa, porque apresenta o fenômeno criminal como processo de intercomunicação entre indivíduo e sociedade; de risco, pela razão de que a sociedade, para garantir seu bem-estar, tolera e assume uma série de riscos provenientes dos avances tecnológicos; globalizada, ante ao estreitamento das fronteiras favorece a expansão da criminalidade organizada que, aproveitando-se das redes internacionais de comércio e informação concretiza suas intenções delitivas; e, em contínua transformação porque a sociedade moderna sofre um processo de aceleração que não se pode conter.

Portanto, ante o exposto, pode-se dizer que o debate mais importante da atualidade concerne, possivelmente, à conciliação do princípio da intervenção mínima com uma efetiva tutela penal que responda à demanda que emana do avance tecnológico verificado após a queda do muro de Berlim e da posta em marcha da Organização Mundial do Comércio (OMC), significa dizer, que o Direito Penal cumpra, de modo eficaz, sua função de proteção dos “novos” bens jurídicos apresentados pelo Estado social, bem como enfrente os problemas que surjam de sua expansão em todos os seus sentidos (tecnológicos, social, econômico, etc…).

Entretanto, essas alterações sociais demandam uma resposta penal desde a perspectiva do risco, pelo que, é oportuno destacar que a “contenção do risco” não é um encargo que compete, exclusivamente, ao Direito Penal, pelo que hão de ser consideradas políticas criminais adicionais de modo que, somente as condutas mais graves sejam tuteladas penalmente, sendo as demais evitadas por meio de políticas sociais paralelas, para que, assim, se possa alcançar um trabalho social real e uma satisfatória contenção dos riscos, se é que esses podem ser, verdadeiramente, controlados. O contrário implicaria em sobrecarregar o Direito Penal, já que uma política criminal fundada no princípio da intervenção mínima deriva, necessariamente, do princípio da subsidiariedade.

Ademais disso, no denominado “mundo globalizado”, há de ser observado o caráter transnacional dos delitos, que importa na relativização das fronteiras, do princípio da territorialidade, o que nos leva a crer, e, ante à realidade a que nos enfrentamos, não poderíamos entender de outro modo, que as soluções as serem buscadas devem ser pensadas em plano global.

Pelo que, pode-se afirmar que o delito transnacional é o efeito perverso da criminalidade organizada, contituindo-se, deste modo, em uma das ameaças mais sérias para as democracias ocidentais. ARISTERGUI caracteriza o delito transnacional como uma “auténtica multinacional del delito, busca el máximo beneficio y el mínimo riesgo, así como las formas más lucrativas de actividad ilegal”(6).

Cumpre destacar que, ademais de poder aceder às tecnologias mais modernas e de contratar os melhores especialistas, em razão da significativa quantidade de dinheiro que faz circular, o delito transnacional caracteriza-se por sua versatilidade, que permite que modifique, com celeridade, sua atividade ao ver afetada a área em que atua.

Essa classe de delitos é uma das conseqüências mais gravosas do processo de globalização que, por sua vez, caracteriza o processo de “expansão do Direito Penal”, por se tratar de um problema planetário, global e que assim deve ser abordado.

Portanto, a conclusão a que se chega, é a de que o Direito Penal, auxiliado pelas demais áreas afetadas pelo frenético desenvolvimento tecnológico que atinge a sociedade pós-industrial e que termina por gerar uma série de problemas, até então desconhecidos, a que se tem de enfrentar, para tanto, obviamente, são necessários alguns “ajustes” e “flexibilizações”, sem que isso importe em um retrocesso do que foi até agora conquistado pelo Direito Penal, é dizer com respeito aos direito humanos e aos direitos fundamentais que são imprescindívies para a solução dos “novos problemas” que nos são apresentados, a diário, por essa nova e moderna sociedade.

Notas

(1) SILVA SÁNCHEZ, Jesús Maria. “La expasión del derecho penal. Aspectos de la política criminal en las sociedades postindustriales”, 2.ª Ed., Editora Civitas, Madri: 2001.

(2) SILVA SÁNCHEZ, Ob. cit., p. 162.

(3) ZUÑIGA, Laura. “Politica criminal”, Ed. Colex, Madri: 2001.

(4) SILVA, Ob. cit., p. 86.

(5) GUIDDENS, Anthony. “Un mundo desbocado. Los efectos de la globalización en nuestras vidas”, 2.ª ed., Ed. Taurus, Madri: 2001, p.14.

(6) ARISTERGUI, Gustavo de. “El delito transacional”, Estudios de política exterior, Vol. XII, nov-dec./1998, núm. 66, Pasilla, Madri: 1998, p. 113.

Anne Carolina Stipp Amador

é especialista em Ciências Penais PUCPR, master em “Derecho de los Negocios”, Universidade Francisco de Vitória – Madrid- Espanha, doutoranda em Direito Penal – Universidade de Salamanca- Espanha.

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