A desigualdade de tratamento jurídico no Direito Penal Brasileiro: aspectos criminológicos

A questão da desigualdade de tratamento e dos privilégios concedidos a determinados indivíduos, em razão de sua posição social, tem-se tornado uma constante na história das instituições criminais.

Numa perspectiva criminológica, a formação da dogmática penal com seus princípios fundamentais, dentre eles o da igualdade, foi fortemente influenciada pelo paradigma etiológico, que carregava em seu seio um forte sentimento de (ideologia) defesa social, possibilitando uma falsa idéia de que o Direito Penal (igualitário) lançaria sua proteção, bem como sua reação, a todos que infringissem determinada lei(1).

Na década de 30, com o desenvolvimento da sociologia criminal, principalmente nos Estados Unidos, a problemática da desigualdade de tratamento e dos privilégios foi posta em discussão. Edwin Sutherland(2), pai da teoria do Colarinho Branco, em seu pronunciamento perante a Sociedade Americana de Sociologia, em 27 de dezembro de 1939, trouxe à tona a constatação de comportamentos ilícitos praticados por pessoas dotadas de respeitabilidade e prestígio social. Sutherland chamou a atenção para a forma privilegiada com que são tratados os criminosos do colarinho branco, além de demonstrar, empiricamente, que a maioria das sanções aplicadas a estes criminosos, apesar de prevista na legislação penal, possui natureza civil (reparação do dano) e, que grande parte dos crimes cometidos estão relacionados às infrações contra a coletividade, ligados, majoritariamente, à ordem econômica. A teoria do labelling approach confirmou o fato de ser o crime uma qualidade atribuída a determinados sujeitos através de complexos processos de interação social, e a criminalidade fruto de uma construção social a que se chega através de definições e tipificações por parte de indivíduos e grupos que exercem o poder econômico e político perante a sociedade. Logo, contraditou-se o princípio da igualdade, confirmando a assertiva de que o crime além de ubíquo é desigual, a sua reação não recai de maneira igual a todos que se comportam de forma ilícita; o modo e a intensidade de sua reação dependem de quem ou o quê (o Estado) visa proteger(3).

De outro lado, cabe destacar que o princípio da igualdade guardado na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 conecta-se, segundo Celso Antonio Bandeira de Mello(4), além da dignidade humana e tratamento isonômico (igualdade formal e material), aos anseios de uma política de justiça social, ligado à idéia de dignidade social, portanto, deve-se garantir políticas públicas que atendam à existência digna de todos os cidadãos; e uma das formas de se garantir essa finalidade é através da arrecadação tributária. Para Canotilho(5) o conteúdo jurídico do princípio da igualdade possui dois traços muito importantes: a igualdade na aplicação e a igualdade quanto à criação do direito, desta forma, além do juiz, o legislador deve estar vinculado à criação de um direito igual para todos sendo defeso conferir tratamento diverso a situações equivalentes, ou, adotar como critérios de diferenciação situações subjetivas. Entretanto, evidencia-se uma diferenciação de tratamento jurídico quanto à posição social do acusado, senão vejamos. O crime de sonegação fiscal (Lei 8.137/90) sofreu inúmeras modificações com o objetivo de se conceder um tratamento privilegiado aos sonegadores como se o crime em tela tratasse tão somente de mero ilícito tributário(6). O art. 34, da Lei 9.249/95, dispôs inicialmente quanto à extinção da punibilidade se o agente promover o pagamento do tributo antes do recebimento da denúncia(7); a Lei 9.964/00 (Refis I) estabeleceu no art. 15, a suspensão da pretensão punitiva do Estado se a pessoa jurídica estiver incluída no regime de parcelamento antes do recebimento da denúncia; a Lei 10.684/03 (Paes – Refis II) em seu art. 9.º estendeu tal benefício para após o recebimento da denúncia, atingindo inclusive processos julgados; e agora, recentemente, tem-se a edição da Medida Provisória n.º 303/2006 (Refis III) reforçando o privilégio do parcelamento concedidos aos que possuem débitos tributários perante a Secretaria da Receita Federal, a Procuradoria Geral da Fazenda Nacional e ao Instituto Nacional de Seguridade Social.

É inegável um tratamento mais benevolente para uma situação muito mais grave se compararmos com crimes que lesam de forma menos intensa a coletividade, de feição individual. O furto, a apropriação indébita e o estelionato cometido em sua grande maioria pelos menos favorecidos, nos casos de restituída à coisa ou reparado o dano à vítima, antes do recebimento da denúncia, ensejam mera diminuição da pena, configurando o instituto do arrependimento posterior, nos termos do art. 16 do Código Penal brasileiro. A única resposta que encontramos para tal diferenciação de tratamento reside nas características do infrator, ou seja, em mero elemento subjetivo. O pagamento/parcelamento do tributo, independente do momento que seja efetuado, é a expressão da desigualdade entre posições sociais. A principal função nestes casos parece não ser a proteção do bem, ligado à dignidade social, tampouco preservar e assegurar a igualdade jurídica, mas a manutenção dos detentores do poder. Visando assegurar o princípio da igualdade contido no ordenamento pátrio, extrai-se a idéia da impossibilidade de exclusão de benefício incompatível com o princípio da igualdade, conforme se pronuncia Gilmar Ferreira Mendes(8) ao explicar que o ponto de partida para o desenvolvimento dessa variante de decisão foi a chamada ?exclusão do benefício incompatível com o princípio da igualdade?, que se verifica quando a lei, de forma arbitrária, concede benefícios a um determinado grupo de cidadãos, excluindo, expressa ou implicitamente, outros segmentos ou setores: (…) Tem-se uma exclusão de benefício incompatível com o princípio da igualdade se a norma afronta ao princípio da isonomia, concedendo vantagens ou benefícios a determinados segmentos ou grupos sem contemplar outros que se encontram em condições idênticas. Essa exclusão pode verificar-se de forma concludente ou explícita. Ela é concludente se a lei concede benefícios apenas a determinado grupo; e explícita, se a lei geral que outorga determinados benefícios a certo grupo exclui sua aplicação a outros segmentos. Abstraídos os casos de exigência constitucional inequívoca, a lesão ao princípio da isonomia pode ser afastada de diversas maneiras: pela supressão do próprio benefício; pela inclusão dos grupos eventualmente discriminados ou até mediante a edição de uma nova regra, que condicione a outorga de benefícios à observância de determinados requisitos decorrentes do princípio da igualdade.

Em breve síntese, a busca pela igualdade de tratamento não deve significar, portanto, a exclusão da lei tida como violadora do ordenamento jurídico (os artigos supracitados), mas a extensão do mesmo benefício contido neles aos demais casos. Pugna-se assim, em virtude da seletividade e da desigualdade que preside o Direito Penal, pela aplicação, em decorrência do princípio da isonomia, ao acusado pobre, sem instrução e desempregado as mesmas benesses penais e processuais concedidas ao acusado sonegador, empregador e economicamente avantajado.

Notas

(1)     ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A ilusão de segurança jurídica: do controle da violência a violência do controle penal. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997.

(2)     SUTHERLAND, Edwin H. El delito de cuello blanco. Trad. Rosa Del Olmo. Madrid: La Piqueta, 1999.

(3)     BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal. Introdução à sociologia do Direito Penal. 2 ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1999.

(4)     MELLO, Celso Antonio. O conteúdo jurídico da igualdade. 3 ed. São Paulo: Malheiros, 1998.

(5)     CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 4 ed. Coimbra: Almedina, 2000.

(6)     FELDENS, Luciano. Tutela penal de interesses difusos e crimes do colarinho branco: por uma relegitimação da atuação do Ministério público. Uma investigação à luz dos valores constitucionais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002.

(7)     Ressalta-se que o STJ pacificou o entendimento de que o parcelamento antes do recebimento da denúncia é causa de extinção da punibilidade mesmo na vigência do Refis I e II. Ver: DELMANTO, Fabio Machado de Almeida; PAULA, Gauthama Fornaciari de e RASSI, João Daniel. Efeitos penais do Refis III (MP n.º 303/06). Boletim Ibccrim n.º 166 Set. 2006.

(8)     MENDES, Gilmar Ferreira. Jurisdição Constitucional. Saraiva, 1996, p.214. Texto lançado aos autos da ação penal n.º 052.98.000273-9, da Comarca de Porto União/SC, sentença proferida por Alexandre Morais da Rosa.

Ana Carolina Elaine dos Santos é advogada, com especialização em Ciências Penais e Processo Penal pela PUC/PR e mestrado em Ciência Jurídica, pela Univali. Bolsista da CAPES durante o mestrado.

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