A crise de segurança jurídica

A imprensa vem divulgando que há muito tempo o órgão estatal encarregado do controle do tráfego aéreo no Brasil já previa o caos a que chegaria o sistema, bem como a situação dos controladores de vôos e dos aeroportos do Brasil, caso nada fosse feito a tempo oportuno para evitar os transtornos experimentados pelos cidadãos brasileiros.     

No plano normativo constitucional, a Constituição Federal do Brasil, de 5 de outubro de 1.988, no caput do art. 5.º, a par concretizar que todos são iguais perante a lei, sem distinção, acrescenta expressamente o princípio da segurança jurídica e da confiança nos atos da Administração Pública segundo os quais são assegurados aos estrangeiros e brasileiros residentes no País a inviolabilidade da vida, da liberdade e da segurança jurídica.

No espaço aéreo do Brasil a 27 mil pés de altura, das aeronaves, pelo menos antes das escandalosas notícias de abusos aos direitos dos usuários, pairava a inocente confiança acerca do transporte aéreo mais seguro do mundo.

Também a confiança de que aqui na terra tudo se passava, entre os controladores de vôos, na mais absoluta calmaria e, por isso, o mito da boa-fé de pôr nas mãos da Administração Pública nossas frágeis vidas, pois se entendia que havia controladores eficientemente treinados praticando atos regulares para nos proteger, enquanto e durante o percurso do vôo, dando-nos a segurança da inviolabilidade da vida.

Ao reverso se verifica, nos remetendo uma vez mais para o desencanto na Administração Pública. Este fenômeno, além de imprudência administrativa, representa nítido desrespeito aos princípios constitucionais, dentre outros: o da segurança jurídica, e da confiança dos usuários nos serviços públicos.

Quanto à segurança jurídica, conceitua JOSÉ AFONSO DA SILVA, que: ?Nos termos da Constituição a segurança jurídica pode ser entendida num sentido amplo e num sentido estrito. No primeiro, ela assume o sentido geral de garantia, proteção, estabilidade de situação ou pessoa em vários campos, dependente do objetivo que a qualifica. Em sentido estrito, a segurança jurídica consiste na garantia de estabilidade e certeza dos negócios jurídicos, de sorte que as pessoas saibam de antemão que, uma vez envolvidas em determinada relação jurídica, esta se mantém estável, mesmo se modificar a base legal sob a qual se estabeleceu? (Constituição e Segurança Jurídica, Estudos em Homenagem a José Paulo Sepúlveda Pertence, Editora Milenium, p. 15).

INGO WOLFGANG SARLET diz que: ?além de assumir a condição de direito fundamental da pessoa humana, a segurança jurídica constitui simultaneamente princípio fundamental da ordem jurídica estatal e, para além desta, da própria ordem jurídica internacional?, ob, cit, p. 85

E CÁRMEN LÚCIA ANTUNES ROCHA, ministra do SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL: ?Há que se realçar que o direito produz-se como expressão da justiça, o que conduz à legitimidade das relações sociais. O direito tem por fim realizar o justo, conferindo à pessoa certeza objetiva em sua vivência e convivência. A justiça busca realizar-se pela verdade, enquanto a certeza busca efetivar-se pela estabilidade. A verdade jurídica justa produz a segurança. E é a estabilidade que produz a coisa julgada, tradução de firmeza e fixidez das decisões judiciais prolatadas pelo Estado?, ob, cit, p. 165. Acerca do princípio da confiança ou da boa fé nos atos da Administração Pública, ALMIRO DO COUTO E SILVA menciona:

 ?só há relativamente pouco tempo é que passou a considerar-se que o princípio da legalidade da Administração Pública, até então tido como incontrastável, encontrava limites na sua aplicação, precisamente porque se mostrava indispensável resguardar, em certas hipóteses, como interesse público prevalecente, a confiança dos indivíduos em que os atos do Poder Público, que lhes dizem respeito e outorgam vantagens, são atos regulares, praticados com a observância das leis? (RDP 84/47).

O órgão responsável pelo controle do tráfego aéreo, no entanto, ao permitir que os aeroportos chegassem a essa caótica situação, transpondo para o usuário o resultado da falta de eficiência e previsibilidade para eliminar o mal antes do acontecimento nefasto, foi omisso e, por isso, abusou da confiança dos usuários e feriu o princípio da segurança nas relações jurídicas de estabilidade entre passageiros e companhias aéreas, precarizando os atos de controles do Estado.

Deveria ter agido com antevisão dos fatos. O princípio da segurança jurídica, sob nova re-significação ditada pelo Supremo Tribunal Federal, Min. Gilmar Mendes, impõe conduta ativa antes do mal acontecer.

Este valoroso princípio do Estado Social Democrático de Direito, em tema de Administração Pública, como dito, outrora se entendida que a Administração deveria apenas abster-se de praticar atos que pudessem causar prejuízos aos administrados. Hoje, porém, este entendimento sofre nova re-significação na relação entre o cidadão e o Estado para impor uma conduta ativa, isto é, um agir eficiente da Administração Pública para afastar a possibilidade concreta de perigo de dano para o cidadão princípio eficiência administrativa.

Judith Martins-Costa, ao comentar a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, o voto do Ministro Gilmar Mendes, no Livro Fundamentos do Estado de Direito, Estudos em homenagem ao professor Almiro do Couto e Silva, Humberto Ávila, organizador, Malheiros, p 126, diz que ?a personalidade humana, considerada em seus aspectos existenciais, protegidos, em larga medida, no catálogo dos direitos fundamentais, mas também nas leis infranconstitucionais, é o bem jurídico fundamental por excelência. Proporcionar as condições para o seu desenvolvimento livre na vida comunitária, no ?mundo comum a todos?, é também dever de atuação do Poder Público. A confiança do cidadão perante a Administração Pública vem aí conotada a um dever que se desdobra, que se bifurca em dois sentidos diversos a um mesmo sintagma-boa-fé: a Administração deve não apenas resguardar as situações de confiança traduzidas na boa-fé (crença) dos cidadãos na legitimidade dos atos administrativos ou na regularidade de certa conduta; deve também agir segundo impõe a boa-fé, considerada como norma de conduta, produtora de comportamentos ativos e positivos de proteção?.

E ainda para essa autora ?sem desmerecer a significação da segurança jurídica como estabilidade ou fixidez jurídica, a decisão do Supremo Tribunal Federal que inaugura essas notas sinaliza, contudo, também uma outra significação para aquele antigo princípio. Faz o trânsito do peso mais ponderável no arco do princípio da segurança da legalidade estrita para a proteção da confiança, permeando-o por um viés de dinamismo. Traça inter-relações entre a confiança e outros princípios, notadamente, com os princípios e direitos fundamentais da personalidade humana. Indica que, por vezes, a confiança carece de ação (e não de abstenção), sob pena de ser afrontado o valor ?justiça?.

Em síntese, o princípio da segurança jurídica em sua nova fase de significado impõe ao Estado um agir ativo, sem trair a confiança e a boa fé dos cidadãos. Logo se vê que em certas situações, principalmente quando em jogo o direito fundamental dos cidadãos, o Estado ao contrário da simples abstenção, deve agir para evitar que os danos ocorram a esses direitos fundamentais.

Vicente Paula Santos é advogado em Curitiba e secretário do Instituto dos Advogados do Paraná (IAP).

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