Várias doses de instabilidade

Em O Clone, o Lobato, de Osmar Prado, escondia uma garrafinha de uísque no paletó e ia para o divã. Em Mulheres Apaixonadas, a Santana, de Vera Holtz, chegou a beber até perfume. Já em Celebridade, o Cristiano, de Alexandre Borges, só faz afogar as mágoas na água-que-passarinho-não-bebe. Além de alcoólatras, os três têm outro ponto em comum: são personagens de novelas das oito, que se sucederam no horário nobre da Globo. O interesse da teledramaturgia pelos tipos “etílicos”, porém, é antigo. Remonta a “bebuns” inesquecíveis, como o Nezinho, vivido por Wilson Aguiar em O Bem-Amado, o Bafo de Bode, de Bemvindo Sequeira, em Tieta, e, é claro, à escandalosa Heleninha Roitman, encarnada por Renata Sorrah em Vale Tudo. “Um bêbado sempre cai bem numa novela”, resume a atriz – que, na época de Heleninha, cansou de ser convidada para “tomar uma cana”.

O Lobato, de O Clone, foi um dos pilares da campanha de Glória Perez contra as drogas. Para Osmar Prado, a preocupação era não tornar o personagem moralista ou caricato. “Ele virou um porta-voz. Precisava ter seriedade”, explica. Vera Holtz também levou tão a sério o drama da professora alcoólatra de Mulheres Apaixonadas que trocou seu habitual estilo brincalhão por uma postura introspectiva. “Meus amigos até pensaram que eu estava com problemas”, diverte-se. Já o viúvo Cristiano, vivido por Alexandre Borges em Celebridade, vai se recuperar com a ajuda da personagem de Júlia Lemmertz, mulher do ator na vida real. “As novelas estão dando continuidade ao debate sobre o alcoolismo. Isso é muito positivo”, acredita o ator.

Politicamente incorretos

A questão social, contudo, é uma preocupação recente. Nos anos 70 e 80, predominaram nas telenovelas os bêbados engraçados ou escandalosos, que passavam longe de uma reunião dos Alcoólicos Anônimos. Podiam não ser “politicamente corretos”, mas eram divertidos. Em O Bem-Amado, de 1973, por exemplo, o “pinguço” Nezinho não se cansava de bajular Odorico Paraguaçu, de Paulo Gracindo, com a saudação “Viva Odorico!”. Mas bastava tomar uns gorós para gritar: “Morra Odorico! Corrupto ordinário, ladrão de merenda…”, emendava, sem trégua. “Era a crítica política do Dias Gomes, num período em que só os bêbados e os loucos falavam o que queriam”, filosofa o diretor Régis Cardoso.

Motivação parecida estava por trás dos escândalos de Heleninha Roitman em Vale Tudo, de 1985 – pelo menos para Renata Sorrah. Na opinião da atriz, a novela de Gilberto Braga, exibida durante a redemocratização, foi um retrato fiel do momento pelo qual passava o País. “Heleninha era sufocada pela mãe autoritária e estava doida para dar seu grito de liberdade. Era ou não uma metáfora de Brasil?”, sugere Renata – que se inspirou na dupla personalidade da menina de O Exorcista. “A Heleninha tomava um gole, eu dava aquela encarada na câmara e virava o bicho!”, empolga-se. Já Bafo de Bode, bêbado ou sóbrio, era sempre o mesmo. Muitas vezes, o fofoqueiro vivido por Bemvindo Sequeira aparentava ser o mais são de Sant?Ana do Agreste, cidade de Tieta, novela de Aguinaldo Silva exibida em 1989. “Ele falava as verdades, era um língua de trapo, um papagaio devasso. Mas também tinha uma ingenuidade cativante”, lembra o intérprete.

Diferentes

Para Bemvindo, os bêbados inspirados em obras de Jorge Amado têm um espírito leve, diferente dos alcoólatras das novelas urbanas, “frutos da neurose da cidade grande”, como diz. Ana Glória Melcop, coordenadora do Centro de Prevenção a Dependências, porém, não acha graça nenhuma do alcoolismo com doses de humor. “Essas pessoas merecem respeito. Não podem ser tratadas como palhaços”, critica. Já Mauro Alencar, autor do livro A Hollywood Brasileira – Panorama da Telenovela no Brasil, tenta ver os dois lados. “Essa preocupação social é um avanço, mas a novela também não deve acabar com o bêbado arquetípico da cultura brasileira”, contemporiza.

Comédias e dramas etílicos

Em Celebridade, Cristiano se culpa pela morte da esposa, que morreu num acidente de carro em que ele dirigia. Mas vai reagir quando ver que pode perder a guarda do filho para o interesseiro Renato, de Fábio Assunção.

Em Mulheres Apaixonadas, Manoel Carlos queria abordar o alcoolismo com um personagem em que o problema parecesse ainda mais grave. Pensou em criar um médico alcoólatra, mas decidiu pela professora ao confirmar Vera Holtz no elenco.

Na novela O Bem-Amado, de Dias Gomes, Nezinho não desgrudava de seu fiel companheiro, um jegue com a alcunha de Rodrigues. Foi uma “homenagem” do autor ao seu grande desafeto, Nélson Rodrigues.

A novela O Ébrio, exibida em 1965 na Globo, contava a história de um médico que se deixa vencer pela bebida, depois de ter sido traído pela mulher e enganado por todos.

Em Por Amor, de Manoel Carlos, Paulo José viveu o alcoólatra Orestes, pai da bela Sandrinha, de Cecília Dassi. O personagem entrou para a restrita galeria dos preferidos do ator.

Alguns notórios “bebuns” da ficção não só entornam o copo como esbanjam invejável talento artístico. É o caso, por exemplo, do poeta Afonso Henriques, personagem vivido por Otávio Augusto em Pedra sobre Pedra. Na verdade, o intelectual da trama de Aguinaldo Silva era francamente uma homenagem ao escritor Lima Barreto. Aliás, toda a trama da novela era fusão de histórias criadas pelo autor de O Homem Que Sabia Javanês. “O Lima Barreto bebia porque tentava se expressar e não conseguia. Era perseguido pelos seus

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