Como foi possível vivermos até hoje sem ouvirmos estas obras? Escutei o novo CD do violinista Emmanuele Baldini e da pianista Karin Fernandes antes de ler o ótimo texto do folheto interno de Maurício Ayer. E me fiz a mesma pergunta com a qual ele abre seu comentário. A sonata Delírio, que dá título ao CD, a primeira de Glauco Velásquez (1884-1914), já provoca um choque, pela modernidade e a absorção do vocabulário romântico-impressionista europeu, recriando-o com harmonias ousadas para a época. Sempre de modo pessoal. A impressão reforçou-se porque pulei a sonata de Miguez e fui direto para a segunda sonata de Velásquez. De novo, o refinamento de uma escrita musical da qual não deveriam nos ter afastado, em nome do cânone oficial da História da música brasileira do século 19.

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Em ambas as sonatas de Velásquez, há o gosto pelos andamentos lentos – no máximo, andantes e só uma escapada para um agitado final da sonata nº 1. O lento expressivo desta sonata é notável: uma cantilena de linhas longas, ou melhor, um lied. Assim como o Adagio da sonata n.º 2. Movimentos lentos curtos, menos de 4 minutos, em relação aos encorpados finais, de 10 minutos cada.

O cuidado com a dinâmica, a emissão perfeita e o sentido de fraseado de Baldini são excepcionais. Crescem por causa do piano refinado de Karin Fernandes (confira a bela e diáfana abertura do piano solo no Moderato inicial da sonata nº 1, ou o começo mais virtuosístico do Finale da segunda).

Já envolvido pela dupla qualidade – das obras e das execuções -, lembrei da sonata de Leopoldo Miguez (1850-1902). Obra idiomática (ele era violinista) de fôlego, de 30 minutos e 4 movimentos, é outra surpresa. Todo mundo o conhece como autor do Hino da Proclamação da República e primeiro diretor do Instituto Nacional de Música, que o novo governo o encarregou de criar e modelar. E ele o fez implantando um modelo alemão de formação de músicos.

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Assim, à dominante vida musical lírica acrescentou-se um vasto repertório romântico francês e germânico. Um movimento parecido ocorreu na Itália com a geração dos 80 (Martucci, Casella, Malipiero, Respighi, entre outros) valorizando a música instrumental, sinfônica e camerística.

Sua bela e muito bem construída sonata segundo os melhores critérios do romantismo europeu é exemplo desta assimilação inteligente. Tem vida própria e fluência musical invejável. Novamente, Emmanuele e Karin estão em estado de graça. Impactam no encorpado Allegro inicial de 11 minutos, esbanjam refinamento no Andante expressivo e sobretudo no delicioso Scherzo. O Finale, de tão bom, me fez retornar à pergunta inicial. Por que se quis jogar no lixo a música produzida por brasileiros que não tivesse uma síncope aqui ou ali?

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Gravações de alta qualidade, como esta de Emmanuele e Karin, são fundamentais para nos devolver esta música sensacional, que é nossa.