Um retrato da burguesia americana

O universo de Will Eisner, o grande mestre dos quadrinhos, sempre foi povoado por pessoas comuns, tipos corriqueiros da população pobre e desamparada dos cortiços nova-iorquinos. Praticamente todas as novelas gráficas assinadas por ele têm como pano de fundo reminiscências de sua infância, pequenas tragédias ou alegrias que povoaram o seu mundo infantil, protagonizadas por desempregados, vendedores ambulantes, mendigos e prostitutas – heróis de um mundo invisível para a grande sociedade americana.

“Depois de The Spirit e de alguns anos de atividade em outras áreas, como educação e treinamento, decidi excursionar por uma nova trilha, a dos romances gráficos” – conta ele, informando: “Desde então, venho selecionando da minha própria experiência e daquela de meus contemporâneos memórias que mostrem um pedaço da América ainda não de todo conhecido, como lugares apertados em prédios sem personalidade e abarrotados de gente, no miolo das grandes cidades.

Assim foi em Um Contrato com Deus, O Edifício e New York – A Grande Cidade.

A outra face

Com O Nome do Jogo, original de 2000, que acaba de sair em uma bela edição da Devir Livraria, Will Eisner inova e ingressa no salão da elite nova-iorquina, muito bem representada pelas poderosas famílias judias, que ajudaram a construir a sociedade capitalista norte-americana. E, pela primeira vez, os miseráveis e desvalidos são substituídos por abastados descendentes de imigrantes judeus, em sua luta por status, um mundo em que os ricos buscam assegurar o futuro da família através do casamento e de herdeiros, enquanto os menos afortunados procuram utilizá-los para obter riqueza e posição social. Aliás, casamento era o nome do jogo para uma elite que se viu obrigada a viver separada dos influentes wasps nova-iorquinos, no final do século 19 e curso do século 20. Em tempo: wasps significava white anglo saxon protestant, isto é, americanos brancos protestantes, de origem anglo-saxã.

Pertencer a uma dessas famílias era passe livre para os lugares mais refinados da Big Apple. Mas a única maneira de ingressar nesse território cobiçado era através de um bom casamento ou, mais propriamente, de um jogo de interesses comerciais e de poder, apesar de todas as conseqüências. E, para revelá-lo, ninguém melhor que Will Eisner, ele próprio de ascendência judaica, que conheceu de perto os meandros dessas relações de interesse, ganância, traições e poder.

Sonho Americano

Na verdade, com O Nome do Jogo, Eisner esboça a história do Sonho Americano, através da saga tumultuada de uma rica família judaica – os Arnheim, descendente de Moses Arnheim, judeu-alemão que imigrou para os EUA duas décadas antes da Guerra Civil, via (pasmem!) Brasil. No centro da ação, está Conrad Arnheim, o herdeiro rude, mulherengo e egoísta do bem-sucedido negócio de vestuários da família.

O prefácio da história, no entanto, é assinado por Abraham Kayinsky, americanizado para Kayn, egresso da Polônia, cujo único filho, Aron, veio a unir-se aos Arnheim. Como os Kayinsky eram incapazes de se erguer por conta própria, o caminho para a ascensão social foi o casamento. Afinal, pessoas das classes mais altas eram sempre melhores e mais felizes. Ou não eram?

Pieguice vibrante

O pesquisador, jornalista e doutor em Comunicação pela ECA/USP Roberto Elísio dos Santos entende que “dos pontos de vista gráfico, estético e narrativo, O Nome do Jogo não apresenta inovações”, posto que Eisner “repete as fórmulas que o consagraram em romances gráficos anteriores”. Ele critica a “visão humanista (e, em certo sentido, piegas)” do autor, mas acaba por reconhecer que “a trajetória das personagens e de seus conflitos é vibrante e envolve o leitor, que sempre encontra um trabalho de qualidade saído da imaginação e das mãos” de Will Eisner.

Para Neil Galman, autor de Deuses Americanos e escritor da série Sandman, todavia, O Nome do Jogo é “uma saga comovente, brutal e irônica, na qual um simples traço de nanquim, um franzir de sobrancelhas, o movimento de ombro de alguém, fala mais do que palavras jamais poderiam. É um saboroso caldo de amor e ambição, de história e de judeus, que são um prazer tanto na leitura quanto na educação”.

O Nome do Jogo, com 168 páginas em sépia e branco, encontra-se à disposição dos interessados nas melhores livrarias da cidade (Curitiba, Saraiva) e também na Itiban Comic Shop.

Voltar ao topo