Um manual de bárbaros

Antônio Lobo Antunes foi durante muitos anos médico-psiquiatra a serviço do Exército de Portugal, tendo nesse mister integrado destacamentos em Angola e Moçambique, à época das chamadas guerras coloniais. Hoje, é um festejado romancista que transpõe para suas notáveis narrativas o caudal de experiências que recolheu ao longo do barbarismo ditatorial.

O tema quase obsessivo de Antunes é a ação sufocante do Portugal dominado pela interminável ditadura do professor Oliveira Salazar em terras africanas, desdobrado em relatos que traduzem para o leitor toda a massa neurotizante descarregada sobre homens e mulheres, lusos ou africanos, sem exceção, aniquilados ética e moralmente pelo autoritarismo mais tacanho e implacável que o mundo conheceu no século passado.

Antunes é um cronista privilegiado desse tempo maldito, porque foi um de seus inúmeros personagens. As histórias que conta, tendo como pano de fundo a presença de militares num país dominado, em primeiro lugar transmitem a certeza de que o ser humano pode se transformar em algo profundamente lamentável.

O horror da guerra, os crimes cometidos em nome de suposta superioridade racial, o direito político do domínio e da espoliação pura e simples, a aniquilação das liberdades e a redução de populações inteiras à condição de escravos sem direito a voz, perpassam as páginas escritas com maestria por esse arguto observador dos dramas humanos.

No fecundo Manual dos inquisidores (Rocco, RJ, 1998), Antunes faz um memorável painel da decadência de importante família portuguesa, de resto, uma paráfrase perfeita de um país subjugado pela montanha de ódio resultante do despotismo, cuja insana pretensão era fazer com que os portugueses formassem a impressão de estarem vivendo fora do mundo. O garrote imposto ao país por pouco não levou a totalidade da nação lusitana a pensar que isso fosse verdade.

Mesmo sem explorar abertamente, como fez em outros livros, o tema da guerra colonial, o conflito está imanente na trama como uma realidade incômoda. Aliás, como é incômodo o ranço colonialista da ilustre casa que produziu ministros, magnatas financeiros e estróinas, literalmente encastelados ao longo de várias gerações na aristocrática Quinta da Palmela, nas cercanias de Lisboa, na qual a máxima distinção concedida aos serviçais, sobretudo às jovens criadas que satisfaziam a tara ancestral assim se verbalizava: “Faço tudo o que elas querem mas nunca tiro o chapéu da cabeça, para que se saiba quem é o patrão”.

A mesquinha exploração das colônias, retratada nessa passagem, à primeira vista hilariante, mas que no decorrer da leitura se desnuda diante da perspicácia do leitora afinal, exige-se em sua mais pavorosa crueldade. Foi assim mesmo que o governo retrógrado lançou sobre pessoas desarmadas um manto opressivo que calou emoções, desejos e consciências.

Não foi por outro motivo que Lobo Antunes elegeu a decadência de uma família nobre e muito rica – metáfora do Portugal fechado para o mundo – para descrever o processo gradativo de degeneração política que se espalhou como uma doença mortal na alma de um povo outrora iluminado pela glória dos navegadores e imortalizado nos versos de Camões.

A ironia suspicaz de Antunes, numa espécie de regozijo tardio pela derrocada salazarista, com sua polícia de costumes que bisbilhotava a tudo e a todos, alcança seu ponto alto quando a governanta flagra “o senhor ministro a ligar para o Ministério do Exército e nada, a esquecer o orgulho e a liga para o major e nada, os ministérios vazios, a secreta vazia, os telefones nos quartéis da Ajuda e do Carmo interrompidos, canções sem moral no rádio, o locutor a garantir que tomaram o aeroporto e a televisão e cercaram a polícia política, que Lisboa lhes pertencia e como se isso não fosse suficiente para me aborrecer o canalha do jardineiro a estragar a relva e a trucidar os goivos, as criadas radiantes com o feriado a pilharem-me a despensa”.

A cena burlesca revive o momento em que a tropa saiu às ruas de Lisboa para extirpar da alma portuguesa a ofensa que lhe corroera por tantos anos. Não houve mais rajadas de balas assassinas, mas distribuição de rosas e cravos, ao som pungente da canção popular inspirada numa certa vila de Grândola.

Assim como caiu de podre a ditadura portuguesa, a aristocrática família de Palmela também vai aos poucos sendo carcomida pela mudança dos tempos e das vontades. Como foram expostas as vergonhas praticadas em nome de um ditador carola e fascista, o ministro agonizante está enfurnado numa clínica para o momento final. Injeções e pílulas não resolvem coisa alguma e o rebotalho é alvo da cantinela metódica das jovens enfermeiras: “Xixi senhor doutor xixi não queremos de certeza sujar o pijaminha lavado pois não, senhor doutor”?

Não há tempo e tampouco a remota possibilidade, mas bem que se tentou, de “entrar no palácio que me cabe de direito”, para “enfiar esta bodega na ordem, governar este esterco”. Nada mais pode ser feito, mesmo que o ministro teime em estar vivo. O cheiro desagradável de seu quase cadáver é igual ao que a ditadura exala em seus estertores. A ruína e a desmoralização marcham lado a lado, em ritmo acelerado, sob o som áspero dos coturnos militares que festejam com o povo nas ruas da Baixa e do Chiado.

“Queimem esta merda toda”, ruge o ex-dominador de consciências, esplêndida figura do salazarismo derradeiro. “Chegaram-me um fósforo e comecei a arder, palavra, comecei de fato a arder de maneira que é tarde demais para sair daqui, tarde demais para você me desatar a ligadura do braço e me ajudar a levantar e a caminhar… tarde demais para me levar à quinta onde ninguém me espera”.

Eis um romance que vale a pena ser lido com atenção pelos brasileiros, não só para reavivar o belo coloquialismo das expressões castiças, que outrora freqüentam a conversa de nossos avoengos, quem sabe pelo vínculo indissolúvel com Portugal, mas porque em muitos ainda é viva a marca de brasa deixada pelo arbítrio.

Ivan Schmidt

é jornalista e escritor.

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