Um César democrático

Que Brutus apunhalou Júlio César parece não haver dúvida histórica. Mas as razões do assassinato são arquitetadas de forma detetivesca tão brilhante pelo filólogo italiano Luciano Canfora que faz do mais famoso imperador romano um personagem renovado no compêndio Júlio César – O Ditador Democrático, que a Editora Estação Liberdade apresenta aos leitores brasileiros com tradução de Antônio da Silveira Mendonça, professor de pós-graduação de Literatura Latina na USP.

Nas 512 páginas do livro estão incluídos mapas, glossário, cronologia completa da vida de César e biografias dos principais personagens históricos, além de uma alentada apresentação do professor Norberto Luiz Guarinelo, do Departamento de História da Universidade de São Paulo (USP). Ao seu ver “através da biografia de César, é a própria política que nos aparece sob novo manto, como o campo privilegiado da ação humana sobre a sociedade, como o espaço do possível, do desejável, mas também do imprevisível”.

César cometeu alguns dos maiores massacres de que a história tem notícia. Tinha um desprezo total pela vida humana ou considerava que aquele era o tributo a pagar por um objetivo ao qual tudo deveria subordinar-se? Mas qual objetivo? Desembarcou na Britânia atraído por fabulosos tesouros que atiçavam sua cobiça ou para executar um já vasto e estruturado projeto de romanização do Ocidente? Impôs-se a conquista da Gália ou pretendia na verdade reunir exércitos em vista de um esperado acerto de contas com seus rivais em Roma? Foi um hábil e afortunado caudilho ou um “fator histórico”? Ou seriam as duas coisas indissociáveis?

Narrar a vida de César significa navegar em meio a esses conflitos. Narrar essa vida única e inimitável, que termina com o mais famoso assassinato da história, significa também portanto escolher: escolher a cada passo entre as vozes amarguradas e discordantes de uma tradição vasta e facciosa, que o próprio protagonista buscou influenciar. Assim as vicissitudes de um homem se tornam metáfora da escrita e história dos riscos que tomou.

Luciano Canfora, de 60 anos, professor de Filologia clássica na Unviersidade de Bari e autor de diversos livros que resultaram de suas apaixonadas pesquisas da antigüidade clássica, argumenta que Júlio César (de prestígio póstumo tão forte e longo que “faz dele um arquétipo até no nome”) “costumava dizer que `sua sobrevivência não era de seu interesse pessoal, ao contrário, interessava sobretudo à república, pois ele havia há tempo granjeado poder e glória em abundância, mas, se algo viesse a acontecer a sua pessoa, a república se precipitaria em guerras civis muito mais graves que as precedentes'”.

Canfora não esconde sua admiração pelo imperador, e acusa as razões do crime no subtítulo paradoxal ditador democrático. E descreve: “Um dos aristocratas mais refinados e cultos, capaz de apreciar as comodidades dos privilegiados, se submete com agilidade e obstinação à mais áspera e perigosa das disciplinas: alimentação frugal, ou até, como observa Plutarco, “indiferença total à alimentação”, pouco sono, satisfeito nas condições menos agradáveis, por exemplo, quando transportado em carros, capacidade inaudita de deslocamento com relação aos meios disponíveis (célebre a viagem de Roma ao Ródano em apenas oito dias), e ao mesmo tempo lucidez e criatividade até nas mais incômodas condições materiais: ditar cartas cavalgando, manter ocupados contemporaneamente dois ou mais copistas.”

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