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Um ator com fé no próprio ofício

Apesar dos quase 83 anos de vida e dos 60 de carreira, Flávio Migliaccio não pensava em falar sobre o seu percurso profissional no palco. “Esse desejo veio mais dos outros do que de mim. Mas acho que todo mundo deve contar a própria história”, afirma o ator, que evoca sua trajetória em Confissões De Um Senhor De Idade, em cartaz no Centro Cultural Correios, no Rio de Janeiro.

Na verdade, esse espetáculo está sendo elaborado há bastante tempo. Além de abordar sua jornada, Flávio traz à tona um estudo sobre a Bíblia. O desafio foi juntar as duas esferas na dramaturgia. “Eu tinha que encontrar um personagem para conversar comigo. Por causa da minha idade, ninguém melhor que Deus, essa figura misteriosa que muitos acreditam existir”, explica.

Personagem de seu texto, Flávio é visitado por Deus (papel de Luciano Paixão), que propõe um pacto: se ajudá-lo a desvendar um estranho acontecimento no céu, receberá a vida eterna como recompensa. No plano da realidade, Flávio não ambiciona essa dádiva. “Não desejo a vida eterna. Se ocorrer, nada contra”, brinca. “Mas se for com esses políticos que estão hoje por aqui, prefiro não”, declara. Assumidamente ateu, Flávio escolheu Deus para contracenar. “Num dado momento do texto, Deus indaga: ‘como vou estabelecer um pacto com alguém que não acredita em mim?’ Entretanto, ele propõe e eu aceito.”

Nesse projeto repleto de questões pessoais, Flávio decidiu acumular funções – de ator, diretor, dramaturgo, cenógrafo e figurinista (essa última, em parceria com Paixão). “Não consigo distribuir. Não que os outros não tenham capacidade. Mas é que quero saber de tudo”, garante. Esse comprometimento com as diversas etapas do processo talvez esteja ligado às circunstâncias da vida de Flávio, que precisou transitar por diferentes profissões para sobreviver – ocupações relacionadas ou não à atividade artística. “Fiz claque para Dulcina e Odilon. Ria e aplaudia os dois”, lembra, referindo-se a Dulcina de Moraes e Odilon Azevedo. “E fiz o mesmo para Ronald Golias.”

O espírito empreendedor remete ainda ao início de sua carreira, no Teatro de Arena, companhia de perfil politicamente engajado, que marcou oposição ao padrão europeu de encenação do Teatro Brasileiro de Comédia (TBC) por meio da valorização de montagens destituídas de produções luxuosas, concebidas a partir de proximidade geográfica com o espectador (determinada pela disposição da arena) e centradas em uma dramaturgia nacional voltada para o cotidiano dos menos abastados.

Flávio pertenceu ao elenco da histórica montagem do Arena para Eles Não Usam Black-Tie – peça de Gianfrancesco Guarnieri, dirigida por José Renato em 1958 -, centrada no conflito entre pai e filho, portadores de visões de mundo contrastantes, em relação à greve na fábrica onde trabalham. A encenação lançou Dirce Migliaccio. “José Renato perguntou se eu não tinha uma irmã para interpretar uma menina na montagem e eu chamei Dirce”, relata.

Dirce, portanto, começou por acaso, assim como Flávio, que, antes do Arena, teve um primeiro contato com o teatro na igreja. “Fui expulso do seminário, onde estava estudando para ser padre. Acabei assistindo a uma apresentação na igreja. Quando terminou, disse para o ator principal que poderia fazer o trabalho dele. Ele respondeu: ‘então faz porque eu não aguento mais’. Não fosse isso, provavelmente nunca teria me tornado ator”, observa.

No Arena, Flávio passou a escrever. Os Seminários de Dramaturgia geraram textos assinados pelos integrantes do grupo – no caso de Flávio, Pintado de Alegre. Ao longo dos anos, não abandonou a dramaturgia. Há certo tempo montou uma elogiada peça de sua autoria – Os Ratos do Ano 2030 -, na qual dividiu a cena justamente com Dirce.

No novo espetáculo, Flávio também destaca alguns de seus feitos na televisão, campo onde se firmou. “Digo que gostaria de ter sido galã de novela. Mas sempre fui convidado para fazer o tio do personagem que namora a mocinha. De qualquer modo, consegui adaptar o meu estilo de representar ao da TV”, avalia. Dotado de jovialidade, Flávio Migliaccio é um senhor cheio de histórias para revelar ao público.

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