Embora tenha nascido na década de 1970, Jia Zhangke já testemunhou mudanças suficientes, na China e no mundo, para acreditar no que dizia François Truffaut (“o provisório é o definitivo”), ou vice-versa.

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Truffaut dizia isso sobre o amor. Jia está explicando as mudanças sociais e políticas na China, que tem documentado em seu cinema. Mas há uma diferença entre os filmes mais antigos e os recentes, como As Montanhas se Separam e, principalmente, Amor até as Cinzas, que está em cartaz nos cinemas do Brasil.

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“Nos filmes antigos, eu buscava entender mais as mudanças externas com que as pessoas tinham de lidar, mas agora estou mais interessado nas mudanças internas e na forma como elas (as pessoas) reagem ao mundo, não são simplesmente levadas por ele”, explicou Jia a um pequeno grupo de jornalistas em Cannes, no ano passado. “Tem a ver com a minha atriz, Tao Zhao, claro, mas também com essa nova vontade minha de examinar o tempo e os gêneros no cinema. Amor é sobre as mudanças ocorridas ao longo de 17 anos, Montanhas, sobre um período maior ainda.”

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Por que o tempo? “Na China, tudo vem ocorrendo muito rápido, digo, as mudanças sociais, as tecnológicas. Afetam as pessoas, redesenham as relações humanas e familiares. O que antes demorava gerações, agora faz com que uma única geração seja fraturada e tenha de conviver com mudanças inimagináveis. Amor é sobre essa mulher que vai presa por disparar o revólver para proteger o companheiro. Ao recuperar a liberdade, e partir atrás dele, descobre que tudo mudou. O país, suas emoções.

“A sociedade chinesa sempre foi muito patriarcal, e eu estou cada vez mais interessado em ver as mudanças, do ponto de vista de outros focos. Estou trabalhando aqui com códigos de gênero, o filme de gângsteres, e numa perspectiva feminista. A mulher que pega em armas, que luta por seu destino.” Até que ponto seu filme é acusado, ou se trata de uma fantasia? “A preocupação nunca foi fazer um documentário sobre o submundo, ou as classes menos favorecidas. Pelo contrário, o que me move é tentar descobrir onde está o poder, de verdade, na China? O mundo mudou muito, o capitalismo criou uma nova casta que tem o poder e o dinheiro, mas ninguém sabe, poucos veem. A economia é dirigida, mas existem os bilionários. Pode parecer esdrúxulo dizer isso, mas o tema de Amor é esse poder oculto.”

Em Montanhas, a narrativa extrapolava a China e ia para a Austrália. “A China tornou-se uma potência econômica com ramificações em todo o mundo, então é natural que eu vá ao exterior para tentar refletir o que ocorre internamente, mas não me considero um diretor globalista. Pretendo continuar na China, enquanto tiver voz. Filmes críticos não são os mais incentivados em meu país.”

A música ocidental é uma referência nesses filmes, Go West, YMCA. “Quando era criança, quando era jovem, tudo era proibido. A pop music virou um sinônimo de rebelião, e a gente ouvia rádios de Taiwan, de Hong Kong. Contrabandeava vídeos. A pop music era uma forma de ir contra o coletivismo que nos sufocava, então usar essa música é uma forma de estimular a memória coletiva, de quando éramos jovens e queríamos nos expressar de uma maneira individual.”