Ana Carolina tem sido uma diretora bissexta. Em quase 40 anos de carreira, iniciada com Getúlio Vargas em 1974, ela não fez uma dezena de filmes. E não foi por opção, mas pela própria descontinuidade do sistema de produção e distribuição no País. Mas Ana nunca demorou tanto para realizar um filme quanto agora. O encanto quebra-se nesta quinta-feira, 19, à noite, mas bem distante do Brasil, em Portugal. Passaram-se quase dez anos desde “O Boca do Inferno”, sobre Gregório de Mattos.

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Ela tentou levantar fundos no País para fazer “A Primeira Missa”. Conseguiu um pouco de dinheiro e uma parceria no exterior, com a Ibermédia e o produtor português José Fonseca e Costa. Seu contrato estipula que “A Primeira Missa” tem de ser mostrado ainda este ano, e ela o faz pela primeira vez, nesta quinta-feira, 19, à noite, em Lisboa, numa sala que pertence à cadeia de Paulo Branco, o ex-produtor de Manoel de Oliveira. Será uma sessão fechada, como a que Ana Carolina vai realizar no sábado, em Santarém, convidada pela prefeitura da cidade em que nasceu e está enterrado o descobridor do Brasil, Pedro Álvares Cabral.

Tem tudo a ver com “A Primeira Missa”, que se inspira no quadro de Victor Meirelles. Ana Carolina filmou com atores portugueses, Rui Unas, Marcantonio Del Carlo, etc. Encantou-se com eles. “São ótimos”, diz. O elenco brasileiro inclui Dagoberto Feliz, Alessandra Maestrini, Fernanda Montenegro e Rita Lee. Sobre a dificuldade para concretizar o filme, resume – “Precisei me reinventar.” Mas acrescenta: “O filme tem aquela minha natureza que você sabe”. Desde Getúlio, com seu subtítulo, Trabalhadores do Brasil, Ana Carolina tem feito filmes para entender o mundo e a si própria.

A trilogia “Mar de Rosas”, “Das Tripas Coração” e “Sonho de Valsa”, entre 1977 e 87, discute a mulher e a família na sociedade sob o jugo da ditadura militar. A psicanálise sempre foi uma ferramenta integrada à sua pesquisa de linguagem. Com “Amélia” e “O Boca do Inferno” (Gregório de Mattos), sem abrir mão do discurso essencial de sua obra, ela o ampliou. Amélia aborda as relações entre colonizadores e colonizados. Gregório, “O Boca do Inferno”, sobre o poeta, leva a contestação e a provocação ao limite.

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Tendo chegado tão longe, Ana Carolina resolveu voltar ao princípio. E o Brasil começa com a oficialização da posse, quando Pedro Álvares Cabral faz rezar a primeira missa, que inscreve a terra, recém-descoberta, na tradição ocidental cristã. Essa integração carrega uma conotação cultural e outra econômica. Vai criar uma dependência – do índio, da terra ocupada. O quadro de Victor Meirelles chama-se “A Primeira Missa no Brasil” e foi pintado em 1860, mais de três séculos depois do evento real. A par de sua qualidade (perfeição?) técnica e estética, comporta uma riqueza muito grande de símbolos. A cruz domina a composição, situando-se ao centro do quadro. Os portugueses, que chegam pelo mar, ocupam a direita. São os conquistadores. Os índios ficam à esquerda, são os conquistados. Não são reverentes, mas sua postura sugere um tanto de curiosidade e outro de aceitação. É uma coisa assim, “meio Mário de Andrade”, define a diretora, referindo-se ao escritor modernista.

Quase 100 anos depois, em 1948, Cândido Portinari criou a sua versão da Primeira Missa. Ela difere radicalmente da de Victor Meirelles, mas ambas adotam o partido da desvalorização da cultura indígena, que Meirelles suaviza (ou atenua) e Portinari radicaliza. No fundo, o que as telas, e a de Victor Meirelles, a que mais interessa a Ana Carolina, propõem é uma reflexão sobre o próprio conceito de nação, e isso tem estado na obra recente da diretora – na obra dela como um todo.

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Ela só lamenta que, ao se reinventar, e reinventar seu filme – o roteiro foi todo modificado -, terminou tendo de adequar, ao dinheiro que tinha, uma reflexão que era, como define, ‘mais corpulenta’. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.