Sudários contemporâneos

O Simpósio de Artes Plásticas “As Tecnologias e as Novas Sensibilidades”, realizado no XII Festival de Artes da Cidade de Porto Alegre, apontou novas tendências de experiências estéticas através do encontro do corpo do artista com o computador e meios tecnológicos. Em seu texto O corpo tecnologizado e o sentir pós-biológico, apresentado neste simpósio, a artista e professora Diana Maria Gallichio Domingues comentou estas novas possibilidades e opiniões sobre mudanças de padrões nas sensações e novos paradigmas nas artes.

Um tema anterior ao do corpo tecnologizado, no entanto, parece não ter sido bem digerido: o do corpo do artista no estado da não-representação. Temos uma longa história da representação do corpo através da imagem, tanto nas artes visuais, quanto no teatro, de modo a perpetuar um corpo existente realmente, ou de ficção. Nas artes plásticas, para citar um exemplo, Diego Velázquez (1599-1660) pintou A Infanta Margarida em Vestido Azul (1659), e nós, espectadores, em 2002, paramos diante da janela apresentada pelo pintor e somos tomados pela contemplação. A palavra “contemplação” vem sendo utilizada em oposição à arte interativa, arte participativa, e em vários dicionários a encontramos como sinônimo de visão, observação, meditação, êxtase e consideração.

O estado de contemplação do espectador pode ser observado, também, no teatro, principalmente naqueles onde há uma representação intencional, de modo a imitar, às vezes encarnar, alguma personagem. Uma representação naturalista, por exemplo, stanislavskiana, onde o espectador vê como que pelo buraco da fechadura; o ator/a atriz vai buscar, com perfeição, a reconstituição do corpo da personagem.

Toda vez que tentamos reavivar um corpo existente na dramaturgia (existido de fato, ou não) estamos, do mesmo modo como ocorre nas artes plásticas, suscitando um antigo prazer humano: o prazer da representação através da imagem.

Ocorre, porém, conforme nos fala Domingues, que “a arte deste século introduziu realmente o corpo no cenário. Não somente a partir de representações que falam do corpo como em séculos anteriores, mas ações, comportamentos que envolvem o corpo na sua capacidade física de produzir trabalho, ou seja, imerso no conceito de energia” [www.artecno.ucs.br/textcorptec.htm]. E tendências como a Body Art, Happening e, principalmente, Performances (todas da década de sessenta) mostram o corpo em um estado que não é mais o da representação ou imitação. O corpo do artista está ali vivo, presente. Sua participação é efêmera, dura apenas o tempo da atividade. Não é possível substituí-lo (como no teatro, onde há um personagem com certas características que o ator/a atriz pode alcançar através da técnica). O corpo do(a) “performer” não representa ninguém além dele mesmo. É preciso recorrer às investigações do Novo Realismo (década de sessenta) para entendê-lo: a realidade exposta se comunicando em tempo real com o espectador, e este por sua vez, abandonando seu estado de contemplação.

Esta questão está bem colocada na performance do artista paranaense Fernando Ribeiro. Tomo a liberdade de viajar, com sua obra, pelo tempo (tempos esparsos) para encontrar correspondente em dois aspectos incidentes na contemplação da imagem do corpo: o místico e o artístico.

No ano de 1960 modelos nus, cobertos de tinta azul, deixaram suas impressões nas paredes brancas de uma galeria. Segundo definição de Pierre Restany, produziram um sudário coletivo. Acontecimento comungado por poucos, os Pincéis Vivos, “happening” de Yves Klein (1928-1962), além de reavivar o fascínio do ser humano pela representação da imagem do corpo, evocou a relíquia cristã, a dualidade entre a fé e um ato artístico.

São João, o apóstolo, descreve: “Tomaram, pois, o corpo de Jesus, e envolveram-no em lençóis com aromas, segundo a maneira de sepultar usada entre os judeus” (Jo 19, 40). Estes lençóis absorveram a imagem, criando elos entre o humano e o divino, representando um corpo existente, materialmente. O Santo Sudário continua sendo estudado por religiosos e cientistas como garantia de que o corpo santo de Cristo foi uma transmutação do imaterial/material/imaterial. O sudário de Klein questiona os dogmas da pintura, ou confirma-os, submerso no potencial efêmero de sua arte, tanto quanto no registro azul que eterniza o acontecido, mas perpetua a certeza da não-imortalidade.

Fernando Ribeiro retoma a questão do figurativo, através de uma performance em vídeo. O artista pendura duas telas, uma de frente para a outra. Pinta uma delas, aleatoriamente, apenas cobrindo-a de tinta. Num segundo momento, entra nu, e correndo, joga-se contra a tela pintada, e depois, contra a tela em branco, carimbando-a. E então, além de nos voltarmos para o sudário de Klein e o Santo Sudário, temos um encontro metafísico, de breve existência, com ancestrais de Anatólia Meridional – Turquia: os Dançarinos Leopardos. Este mural de 6000 a.C. emociona principalmente pela resposta que não temos: por que é tão sedutora a representação da imagem do corpo? Andreas Lommel, em O Mundo da Arte (Ed. Expressão e Cultura, 1979), comenta: “O aparecimento de figuras humanas naturalísticas animadas [neste período] refletiu a perda de interesse pelos animais de caça” (p. 38). De onde vem, afinal, este desejo? Comunicação, misticismo ou expressão?

A performance de Ribeiro confronta passado e presente, pintura figurativa e abstrata. Contudo, o figurativo de sua performance é a presença física do artista que circula entre a representação abstrata. Como se ao contemplar a imagem desenhada na parede em 6000 a.C. víssemos sua projeção no tridimensional, viva, a nos mostrar nosso corpo antigo. Mais uma vez a antropometria de Klein (estudo do conhecimento das diversas partes do corpo humano).

Este corpo em ação, ligado à action paiting de Pollock (1912-1956), onde o corpo em ação interfere no acaso, e também à Body Art, reflete as questões acima descritas, pois temos um corpo em estado diferenciado do da representação pictórica e da representação teatral, conforme o entendimento de Pierre Restany, no livro Os Novos Realistas (Ed. Perspectiva, 1979): “Os atores [são] mais protagonistas do que intérpretes (o termo técnico corretamente empregado é performer, aquele que executa, que vai até o fim)” (p. 253). Deste modo, não mais se eterniza uma fração de segundo da existência de um corpo, e também não há mais a tentativa de encarnar o corpo de algum personagem.

Contudo, a simultaneidade de acontecimentos que estamos presenciando nos mostra, de um lado, a necessidade de contemplação, tão antiga, da obra de arte, e, ao mesmo tempo, experimentações ultrapassam o limite ser humano/máquina e buscam novas formas de satisfações estéticas. Estamos no ciberespaço, mas desejamos a moldura: “Mas todas essas tecnologias ainda nos colocam diante de uma superfície a ser contemplada. Assim, são imagens baseadas na aparência que são contempladas de uma janela, após serem fixadas na memória do filme, da fita de papel, da projeção, ou da tela luminosa da TV” (DOMINGUES, site já indicado).

Amabilis de Jesus da Silva

é mestranda na Udesc e professora de Indumentária e Cenografia na FAP, onde também é membro do Núcleo de Pesquisa em Artes Cênicas. O artista Fernando Ribeiro colaborou com os trabalhos do núcleo da FAP em 2002 e ministra cursos na Universidade Tuiuti.

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