Silêncio na corte do rádio

Rio de Janeiro – A cantora Nora Ney, uma das rainhas do rádio, morreu ontem de manhã no Rio de Janeiro, aos 81 anos, de falência múltipla dos órgãos. Hipertensa e fumante havia muitos anos, ela sofria de enfisema pulmonar e precisava de aparelhos para respirar. O marido, o cantor Jorge Goulart, de 77 anos, companheiro de Nora desde 1951, esteve ao seu lado até o fim. Goulart contou que “a morte foi um alívio”, já que Nora vinha sofrendo com o longo período de internação no Hospital Samaritano, na zona sul do Rio, onde estava desde agosto. “Ela morreu sorrindo”, contou, com a voz fraca, resultado de uma cirurgia na garganta para retirada de um tumor.

Nora já sofrera um câncer de bexiga, há 29 anos, quando médicos previram que ela teria apenas seis meses de vida. Sobreviveu e passou ainda por dois derrames, nove anos atrás. O enterro aconteceu ontem à tarde, no cemitério Jardim da Saudade, em Sulacap, zona oeste do Rio.

Nora e Jorge se conheceram em 1951. Foram apresentados pela cantora Carmélia Alves, amiga comum. Ambos eram separados – ela tinha dois filhos e ele, um. Foram então morar juntos – rejeitavam o casamento convencional e se diziam “companheiros”. Só se uniram oficialmente em 1992, para fins burocráticos. Ciumenta, Nora avisou às amigas na ocasião: “Agora ele é meu marido, ninguém tasca”.

Inglês

Iracema de Sousa Ferreira, nascida em 20 de março de 1922, adotou primeiro o nome artístico Nora May, quando cantava músicas em inglês. Virou Nora Ney por um erro de grafia na carta de uma fã enviada à Rádio Tupi, onde foi lançada, substituindo Araci de Almeida. À época do encontro com Goulart, a artista, que desde os anos 40 era integrante do fã-clube Sinatra-Farney, começava a carreira. Cantava na Rádio Nacional e fazia shows em boates de Copacabana e no Copacabana Palace. Era o auge do samba-canção e das músicas de fossa, estilo do qual Nora se tornou uma das principais representantes. Ela resistiu a cantar em português – achava que sua voz não combinava. Mas acabou cedendo e gravou, ainda na Tupi, Dorival Caymmi e Ary Barroso.

O casal Nora e Jorge era afinado não só na música, mas também no engajamento político. Declararam-se comunistas e ousaram ao ser os primeiros brasileiros a fazer shows na União Soviética. Juntos, percorreram ainda a China e países do leste europeu. Em 1964, no golpe militar, ambos acabaram cassados da Rádio Nacional. Passaram os primeiros oito anos da ditadura exilados.

Nora lançou Antônio Maria e Tom Jobim

Muito antes do exílio, ainda na década de 50, foi Nora Ney quem lançou o compositor Antônio Maria, de quem gravou Menino grande, em seu primeiro disco, de 1952 -que lhe rendeu o primeiro disco de ouro da história da música brasileira. Também foi de Antônio Maria seu maior sucesso, Ninguém Me ama, parceria dele com Fernando Lobo, gravado ainda em 52. Ela foi também uma das primeiras a cantar composições de Tom Jobim, que trabalhava como ensaiador da gravadora Continental quando Nora uma das contratadas.

Em 1953, ano em que gravou De cigarro em cigarro, de Luiz Bonfá, Preconceito, outra de Antônio Maria e Lobo, e É tão gostoso, seu moço, de Mário Lago e Chocolate, foi eleita rainha do rádio. Em 1955, já muito popular, surpreendeu ao lançar a primeira gravação de rock no Brasil: Rock around the Clock, tornada famosa por Bill Haley. A música se difundiu rapidamente entre os jovens da época.

Estilo

Especialistas em música brasileira consideram que Nora criou um estilo ao interpretar as músicas de forma calma, como que “dizendo” a letra, sem impostar a voz – o mesmo que depois seria adotado e eternizado por João Gilberto. “A voz grave, a maneira sussurrada de cantar foi um espanto na época dela”, diz o pesquisador musical Ricardo Cravo Albim, que está preparando um espetáculo no Teatro João Caetano para ajudar a pagar as dívidas de Jorge Goulart. O show deverá reunir várias ex-cantoras do rádio.

Cravo Albim lembrou a personalidade de Nora, que contrastava com as canções que cantava: “Ela tinha o repertório muito triste. Abria a boca e muitas pessoas choravam. Mas, pessoalmente, era engraçadíssima, bem humorada”. Nos anos 80 e 90, Nora se apresentou com outras cantoras do rádio. A última homenagem a ela foi em 2000, quando o cantor Elymar Santos fez um show no Canecão. Sentada numa cadeira de rodas, ela cantou Ninguém me ama. No mesmo ano, gravações suas foram relançadas em CD.

Voltar ao topo