Sale Wolokita

Um depoimento*

Eu conheci Sale Wolokita no tempo em que Curitiba estava fazendo a sua revolução cultural em artes plásticas e artes cênicas. Eram os movimentos do final dos anos 50 que tinham na Galeria Cocaco, Biblioteca Pública e Boca Maldita os vértices de um triângulo escaleno de tendências, escolas e liberdades. Naquele tempo ele já era um ator em busca de personagens que encontrava abrigo e espaço no histórico Teatro do Sesi, sob a liderança de Aristides Teixeira, o extraordinário Teixeirinha.

Nos primeiros lances daquele período de fermentação intelectual, quando a sua presença despontava no cenário de tantos animadores culturais, era possível ver a sua alegria e sentir o seu entusiasmo com as coisas da vida e do mundo. Certamente era o mais alegre e comunicativo de todos quantos desfilavam nos palcos ou nas galerias.

A nossa Curitiba ainda não tinha emissora de televisão. O rádio, o cinema e o teatro eram os meios de comunicação que preenchiam o tempo e os espaços da cidade. Nos jornais havia três colunas diárias de teatro: no Diário do Paraná, O Estado do Paraná e O Dia, assinadas por Eddy Antonio Franciosi, Roberto Menghini e Glauco Flores de Sá Brito. Eu passei a substituir Franciosi por um período aproximado de quatro anos. Naquele palco iluminado da redação eu vivia em torno das figuras do seu Aderbal (Stresser), de Walmor Marcelino, Vinícius Coelho, Léo de Almeida Neves, Luiz Geraldo Mazza, Silvio Back, José Richa, Walmor Coelho, Aderbal Fortes de Sá Junior, Dino Almeida, Eduardo Rocha Virmond, Danilo Cortes e tantos outros. O Airton Batista era o diretor de redação que recolhia os textos das coisas da cidade, do país e do mundo enquanto o Benjamin os distribuía pelos espaços desenhados em cima de sua prancheta, realizando o milagre da transformação da matéria bruta da informação no refino da leitura através da arte e da inteligência da diagramação.

Eu lembro também do Sale naqueles tempos em que o fascínio do jornal e do teatro antecederam a chegada da televisão. O céu ficou mais perto com a viagem espacial do Sputnik (1957) e a morte parecia mais distante pela sobrevivência do faquir Urbano, exposto na Avenida Luiz Xavier, fechado num caixão de vidro durante semanas, sem comida nem água. A cidade ficara mais alegre e mundana com os efeitos benéficos da revolta dos pintores impressionistas e a movimentação da Cocaco.

Passaram-se os anos. Deixei o jornal e me dediquei à advocacia e ao magistério. Ocasionalmente, quando eu me encontrava com o Sale num dos cantos da cidade ele – sempre sorrindo – me dizia: “Você precisa voltar para o teatro”.

Foram palavras proféticas. Voltei. Não como ator, diretor ou cenógrafo, funções que me envolveram durante o tempo da universidade ao participar da Sociedade Paranaense de Teatro, sob a direção e a vocação persistente de Ary Fontoura, ao lado de tantos outros idealistas como Sinval Martins e Odelair Rodrigues. Eu retornei para interpretar o papel de Secretário e dirigir a usina de sonhos da Secretaria de Estado da Cultura. Também voltei a projetar cenários, agora de outra natureza e para outros fins. Eles se confundiam com o imenso repertório de programas e a infinita capacidade dos produtores e intérpretes de Ciências, Letras e Artes. O trabalhador da Cultura, independentemente das vertentes ideológicas e sociais de sua obra, é um desses navegadores da quarta dimensão da existência e que, não satisfeito em ver, contar e pintar o arco-íris, ainda procura alcançar o fundo de suas imagens e cores.

Convidei Sale Wolokita para ser o chefe da Coordenadoria de Ação Cultural. Nada mais apropriado para um animador nato como só ele sabia ser. Sua dedicação funcional e seu estado de espírito eram virtudes fundamentais para movimentar um setor que cuidava de projetos em diversas áreas, entre elas, música popular e teatro. Já no relatório do primeiro ano de atividades da Secretaria ficaram registradas as marcas múltiplas de atividades e relevantes projetos daquele setor, tais como: Liberdade e participação (popularização das artes cênicas); Ação Cultural para Populações Confinadas; Fórum de Ação Cultural para Portadores de Deficiência Física. O apoio às promoções de secretarias e núcleos de Cultura de cidades do interior do Estado era também uma das realizações da Coordenadoria sob a responsabilidade de Sale Wolokita. Nos anos seguintes -1988 a 1990 – foram muitas as iniciativas e as realizações, desde os festivais de música e de teatro até as mais rotineiras atividades de orientação e estímulo para os produtores culturais que buscavam apoio na Secretaria, não se descuidando de palestras e debates sobre importantes temas da área. Um grande apoio à música popular e em especial aos músicos paranaenses marcou a gestão de Sale Wolokita, com a criação e funcionamento das Salas Bento Mossurunga e Janguito do Rosário.

O seu poder de persuasão era extraordinário. Lembro bem que determinados projetos elaborados por teatrólogos, cineastas ou músicos, não tinham condições de viabilidade financeira ou técnica. Não querendo desapontar os seus autores, eu chamava o Sale para administrar a dificuldade. Ele sorria e comentava: existe um jeito para dar e outro para negar. Em suma: ele cuidava de projetos que deveriam sair do papel e também daqueles que precisavam ser devolvidos. E o fazia com absoluta competência.

Um dos muitos episódios que marcaram a sensibilidade e a eficiência do pranteado Sale Wolokita ocorreu com a inauguração da Casa João Turim. O Governador Bento Munhoz da Rocha sancionou a Lei n.º 1.538, de 1953, cujo projeto, de iniciativa do Deputado Júlio Rocha Xavier, previu a criação de um espaço para recolher e exibir as obras do imortal artista paranaense. Mas os anos passaram e o museu jamais fora efetivamente instalado. Um grande e valioso acervo corria o risco de se perder apesar das atenções de Jiomar José Turim, o sobrinho e depositário das esculturas conservadas em local inadequado. Ao assumir a Secretaria de Cultura uma de minhas promessas foi a de viabilizar a escolha de um prédio adequado para o surgimento real e o funcionamento do importante museu. E assim aconteceu com a inauguração, em 10 de janeiro de 1989, na presença de muitas autoridades, entre elas o Governador Alvaro Dias e o Deputado Júlio Rocha Xavier que, abrindo a cerimônia, recebeu comovida homenagem. Mas quase ninguém ficou sabendo que o local, à Rua Mateus Leme, 38, somente ficou disponível para as obras de arquitetura, pintura e organização do acervo, após a desocupação do edifício público que estava servindo de moradia para infelizes mendigos. Quem poderia, com humanidade e sabedoria, fazer a desocupação dos sem teto? Ele mesmo, o Sale Wolokita. Durante várias semanas de paciente e sensível diálogo e após encontrar outro local para transferir os inquilinos, ele deu por encerrada a sua missão e as obras puderam ser iniciadas. Estava nascendo a Casa João Turim, herdeira do legado generoso de dois governos e sucessora da moradia de personagens anônimos assim como foram muitas das figuras humanas que João Turim modelou em suas esculturas.

Nos últimos anos, Sale Wolokita trabalhava num programa de televisão encarregado de leiloar obras de arte. Sua voz, grave e cadenciada, anunciando o objeto e o preço, era ouvida como se estivesse no fundo de um palco onde não aparecia o ator. “Quem dá mais?”. Eu gostaria de dar o melhor lance para ficar, não com a tela ou a escultura leiloadas, porém com o tempo de satisfação que a convivência com o Sale me proporcionou, num inesquecível relacionamento de alegria e amizade.

A imagem que melhor identificou Sale Wolokita em sua passagem terrena e da qual guardo a melhor memória, foi o sorriso. Amplo e irrestrito, envolvente e retumbante.

E para quem, como ele e eu, que tanto amam a arte do teatro e da ópera, nada melhor que a saudação ao riso, com a lembrança de uma passagem do Barbeiro de Sevilha, de Beaumarchais:

“Apresso-me de rir de tudo por medo de ser obrigado a chorar”.

*Texto escrito a pedido do jornalista Aderbal Fortes de Sá Júnior para o livro de homenagem póstuma ao pranteado administrador, ator e animador cultural.

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