Restaurados, ‘Libertários’ e ‘Chapeleiros’ saem em DVD

Libertários, de Lauro Escorel, e Chapeleiros, de Adrian Cooper, que agora saem em DVD, são dois dos melhores exemplares do cinema social brasileiro. O lançamento, primoroso, feito a partir de cópias restauradas, é do Instituto Moreira Salles (IMS). Vem acompanhado de extras, que explicam o processo de feitura dos filmes, realizados no tempo nada propício da ditadura militar, durante o governo do general Ernesto Geisel (1974-1979). Além dos extras, a caixa contém um folheto com ensaio assinado por Carlos Augusto Calil, que qualifica Libertários e Chapeleiros como “filmes irmãos”, e um texto do brasilianista Michael Hall sobre as lutas operárias em São Paulo. Um fino biscoito.

Filmes irmãos, diz Calil. E melhor definição não há, pois saem do forno de um mesmo projeto, o de resgate das lutas e da cultura operária em um momento histórico em que se vislumbrava ao longe o processo de abertura, mas com a redemocratização ainda permanecendo em horizonte histórico indefinido.

Ocorre com Libertários e Chapeleiros o fato raro de seu processo de filmagem ser quase tão interessante quanto os filmes em si. No lançamento do DVD, no Espaço Itaú de Cinema, na rua Augusta, estiveram seus protagonistas para, após a projeção das obras, debater com o público. Além dos diretores Lauro Escorel e Adrian Cooper, lá estiveram os professores Paulo Sérgio Pinheiro, Francisco Foot Hardman e Victor Leonardi. O pequeno público presente pode se considerar privilegiado por ter ouvido a história dos filmes pela boca dos seus artífices.

A produção dos filmes se dá no âmbito do projeto Imagens e História da Industrialização do Estado de São Paulo, realizado pela Unicamp entre 1976 e 1978. Quer dizer, em pleno governo Geisel, e com verbas oriundas do Ministério da Indústria e do Comércio, na gestão de Severo Gomes. O projeto era coordenado pelos professores Paulo Sérgio Pinheiro, Michael Hall e Victor Leonardi. Este, no entanto, não teve seu nome creditado, pois havia um dossiê no SNI que o dava como elemento subversivo.

Escorel conta ainda que Geisel abordou Severo Gomes numa reunião ministerial e quis saber o que uma pesquisa sobre trabalhadores tinha a ver com seu ministério. Severo respondeu: “Ora, presidente, é impossível conhecer a história da indústria paulista sem falar nos operários”. E assim o projeto seguiu. Para seu desenvolvimento foi fundamental a descoberta do precioso arquivo do anarquista Edgard Leuenroth, hoje na Unicamp “O acervo estava no Brás, num barracão, escondido por dois dos filhos de Leuenroth, Nilo e Germinal. Não entendo como aquilo não foi destruído, como não pegou fogo!”, espanta-se Paulo Sérgio Pinheiro. Em todo caso, Libertários, em especial, levará a marca desse material encontrado, e que hoje se tornou arquivo consolidado e valioso manancial para pesquisas sobre a época (Consultar www.ifch.unicamp.br/ael/).

Os dois filmes, como acontece muitas vezes com os irmãos de sangue, mantêm afinidade profunda, porém são muito diferentes, apesar da origem comum.

Libertários adota o formato do recorte histórico, a partir da evolução da cidade de São Paulo, em finais do século 19, de província a capital industrial. A concentração de mão de obra, formada na maior parte por imigrantes italianos, mas também portugueses e espanhóis, está na origem do proletariado urbano, com suas lutas e suas reivindicações. Como as condições e duração das jornadas de trabalho eram abusivas (16 horas para adultos, 11 horas para crianças), havia o fermento ideal para a efervescência social. Uma das inovações do documentário é o destaque para a presença dos anarcossindicalistas na luta operária. A tradição historiográfica costuma atribuir esse mérito aos comunistas, minimizando ou ignorando a presença dos anarquistas. O filme resgata essa luta. Não por acaso, um dos momentos mais emocionantes do filme é o enterro, ao som da antiga canção revolucionária Bella Ciao, do sapateiro anarquista José Martinez, morto pela repressão.

A narrativa em off se dá pela voz de Othon Bastos que, numa pequena cena, aparece vestido como os proletários daquele tempo e recita um texto anarquista. As cenas mesclam material de época, filmes e fotos, a imagens em movimento coletadas já na década de 1970, como a mostrar que as coisas não eram tão diferentes assim nos dois períodos. Mal se percebe a passagem entre o material antigo e o moderno, também filmado em preto e branco.

Já Chapeleiros adota metodologia oposta. Filmado na fábrica de chapéus Cury, em Campinas, é um típico documentário observacional, sem qualquer diálogo. As primeiras imagens são impactantes. Homens deitados em pranchas, dormindo, torsos nus. Não compreendemos de imediato quem são, mas, à medida que o filme avança, e essas cenas retornam, vemos que são os operários, esgotados, tirando uma soneca depois do almoço, antes de retornar à labuta.

Chapeleiros é o registro desse duro cotidiano operário. Eles trabalham com o torso nu porque o calor é insuportável. O interior da fábrica parece um caldeirão do inferno, dantesco. A exigência dos movimentos coordenados é intensa, mecânica, repetitiva, exigente. Impossível não lembrar do clássico Tempos Modernos, de Chaplin, mas sem qualquer atenuante cômico. “Eu queria captar o transe que toma os trabalhadores nesses gestos repetitivos, ao longo de horas, o dia inteiro”, diz Cooper, inglês radicado há mais de 50 anos no Brasil.

No final, um plano longo, demorado, cheio de significados. No término da jornada de trabalho, os operários depositam num pote suas fichas funcionais, para que o dia seja contado, e vão saindo da fábrica. Quase nenhum deles usa chapéu. Apenas um ou outro trabalhador, mais velho. Aquela fábrica está condenada, pela mudança de hábitos. Também o seu modo de funcionamento? Não perdurará ele em outras fábricas?

Esses dois filmes testemunhos das lutas operárias tiveram ampla circulação em sindicatos, festivais e universidades. Libertários chegou a ganhar a Margarida de Prata, prêmio da CNBB para obras de caráter humanista. Que tenham sido financiados pelo Ministério da Indústria e Comércio durante uma ditadura é uma das inúmeras e refinadas ironias da história social brasileira.

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