Público ovaciona “Carandiru”

Cannes – Ao chegar à noite à Sala Lumière, a principal do Palais, a equipe de Carandiru tinha uma pequena multidão a esperá-la. Claro, nada que se comparasse à batalha campal armada horas antes para recepcionar Nicole Kidman e a trupe de Dogville. Mas enfim, foi uma acolhida carinhosa e Babenco até saiu do tapete vermelho para conceder um autógrafo.

O diretor e elenco (Rodrigo Santoro, Maria Luiza Mendonça, Caio Blat e Aída Lerner) e mais o médico Drauzio Varella com a mulher, Regina Braga, subiram a passarela ao som de Aquarela do Brasil, clássico de Ari Barroso que fecha o filme de Babenco, depois do massacre dos 111 presos.

Já a crítica se dividiu. O Le Figaro traz texto respeitoso, mais descritivo que opinativo. Depois de contar com detalhes como eram a prisão e os dramas mostrados ao longo das 2h32 de Carandiru, o texto fala da “força desse filme duro e exigente”. É um artigo que se detém mais sobre o caráter humanitário do que sobre a linguagem usada na obra. O Libération não é tão condescendente. Diz que, em comparação a Cidade de Deus, apresentado ano passado aqui na mostra Un Certain Regard, Carandiru parecia “antiquado”. Agora é ver o que diz a palavra definitiva, a do júri presidido por Patrice Chéreau.

Dois filmes franceses foram apresentados na mostra competitiva de Cannes: Swimming Pool, de François Ozon, e Tiresia, de Bertrand Bonello. Os dois diretores já são conhecidos no Brasil. Ozon, por Sob a Areia; Bonello, por O Pornógrafo.

Swimming Pool traz a história de uma escritora em crise (Charlotte Rampling) que vai escrever seu livro na casa de veraneio de seu editor, no sul da França. O filme evolui no sentido de um thriller ambíguo, no qual nunca se sabe direito o que vem da realidade ou da imaginação da escritora. Uma direção tensa e a sempre convincente Charlotte fazem dele um entretenimento agradável.

Mitologia

Com Tiresia, Bonello revive o antigo mito grego. Segundo essa narrativa, Tirésias foi transformado em mulher e assim viveu durante alguns anos, até virar homem de novo. Com a experiência dos dois lados, afirmou que a mulher tinha nove vezes mais prazer do que o homem na relação sexual. Pela inconfidência, Hera o puniu, furando seus olhos. Teve a compensação de Zeus, que o transformou em vidente.

Na versão contemporânea, Tiresia é um travesti, vivido por dois intérpretes brasileiros, a carioca crescida em Curitiba Clara Choveaux e Thiago Teles. Tiresia é seqüestrado por um freqüentador do Bois de Boulogne (onde tradicionalmente exercem os transexuais) e mantido preso no porão de uma casa na periferia de Paris. Terranova (Laurent Lucas) é fascinado por uma canção entoada por Tiresia, a popular Terezinha de Jesus, e pede que a traduza para ele. O filme torna-se mais estranho quando, privado dos hormônios que mantêm sua aparência feminina, ela vai se transformando em “ele”.

Lógica

Ao responder uma pergunta da reportagem sobre a razão de escolher personagens brasileiros para um tema universal, Bonello disse que, de fato, havia muitos travestis brasileiros em Paris, por isso a escolha era lógica. “Além disso, a cultura brasileira é muito católica e isso beneficiava o jogo entre o sagrado e o profano que eu queria encenar”. Vários diálogos do filme são falados em português e legendados em francês. Há outra cena interessante no interior do apartamento de um trio de travestis, no qual se vê ao fundo uma bandeira do Brasil. Por quê? “Conhecendo brasileiros e visitando apartamentos de travestis para pesquisar, via sempre bandeiras. É incrível, mas os brasileiros não se afastam da sua bandeira nacional”.

Na entrevista, Clara, que trabalha como garçonete em Paris, disse que espera ansiosamente outra oportunidade no cinema. Thiago lembra que também gostou da experiência. Sobre a opção de trabalhar com dois atores, Bonello disse que escolheu a saída mais lógica, porque tinha em mãos um personagem que era mulher na metade da história e homem na segunda.

O filme em si tem seus momentos de interesse e joga bem com a estranheza da ambigüidade sexual, tema escolhido por Bonello, preocupado em investigar a sexualidade e seus caminhos por vezes paradoxais, como se viu em O Pornógrafo. Bem-recebido, Tiresia ganhou crítica consagradora do Libération, que elogia o tom seco da imagem e lírico do som. Acha a direção depurada e conclui pela consagração dos atores: “Os dois atores brasileiros são inesquecíveis: Clara Choveaux, uma nova Lucia Bose, e o aristocrático Thiago Teles”.

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