Desta vez, Pitty resolveu inverter o processo: a turnê veio primeiro, e agora, nesta sexta-feira, 26, seu quinto e mais recente disco, Matriz, chega às plataformas digitais. “Quem foi que escreveu que precisava ser do outro jeito?”, pergunta a cantora e compositora baiana, agora nos seus 41 anos. O disco mantém o espírito roqueiro que fez a artista ser uma das mais populares do Brasil desde o início dos anos 2000, mas se abre a uma exploração potente da sua terra natal e das possibilidades que músicos contemporâneos de Salvador e região abraçaram com fervor nos últimos anos.

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O álbum traz parcerias com uma turma boa da Bahia: Lazzo Matumbi, Larissa Luz, BaianaSystem; uma música de Teago Oliveira, do Maglore, outro grande expoente do rock baiano, a faixa Motor, também gravada recentemente por Gal Costa, e uma de Peu Sousa, parceiro histórico de Pitty, morto em 2013; um sample de Dorival Caymmi; e pelo menos uma intersecção involuntária com Gilberto Gil.

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É também o primeiro disco da cantora depois de duas novas experiências em sua vida. A primeira, de forte voltagem transformadora, a maternidade (Madalena tem hoje 3 anos). A segunda são as temporadas como uma das apresentadoras do Saia Justa, programa do GNT em que debate temas que vão da criação artística a assuntos políticos agudos, passando pela adaptação da linguagem ao mundo contemporâneo e atitudes em relacionamentos, tudo isso ao vivo. TV em alto nível.

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Produzido pelo parceiro de longa data Rafael Ramos, Matriz não representa exatamente um “retorno” às suas origens, segundo Pitty. “Se fosse um retorno, eu voltaria para o mesmo lugar. Estou indo para um lugar diferente”, disse a cantora numa entrevista realizada nesta quinta-feira, 25, na zona sul de São Paulo.

E ela traz a sua própria bagagem. A faixa Roda, no centro do disco, uma parceria com o BaianaSystem, começa com a guitarra baiana inconfundível de Roberto Barreto para logo se transformar num rock n’ roll cheio de efeitos sobre guitarras, claro, mas também com a presença de um cavaquinho e um bandolim (ambos distorcidos). “Quando eu vi o Baiana surgindo, falei:

apareceu alguém para sintetizar a onda de ser pesado, ter letras contundentes e juntar os ritmos. Bateu para mim também, porque é muito difícil incorporar cultural local com outras paradas sem ficar meio assim…” Aqui, ela conseguiu.

Influências

Pitty saiu do período de licença-maternidade, por volta de 2017, e ficou com vontade de voltar à estrada. Mas o disco novo ainda não existia: a solução foi inverter a ordem dos fatores e montar uma turnê, nova, reimaginada, com algumas canções inéditas e só depois trabalhar no álbum: o resultado é agora o quinto disco de estúdio de sua carreira solo, o primeiro em cinco anos, Matriz.

“Muito dessa história de incorporar beats nas músicas e ter referências da Bahia surgiu durante a turnê. Uma música, Sol Quadrado, estava na minha primeira demo, de 2002”, comenta a cantora, numa entrevista ao jornal O Estado de s. Paulo. Ela não considera sua nova aproximação com a terra natal como um retorno simplesmente porque a Bahia a que ela chega agora é muito diferente daquela onde começou, no início dos anos 2000. “Era muito diferente. Havia uma monocultura. Embora a Bahia sempre tenha sido um lugar de diversidade, quando eu cresci na cena, isso não se apresentava no dia a dia do rolê”, explica.

Agora ela volta com parcerias de muitos artistas conterrâneos que estão consolidando caminhos novos na sempre vibrante música que vem de lá.

O disco apresenta intersecções involuntárias também com a geração da Tropicália. Motor, a música de Teago Oliveira que Pitty regravou em Matriz, também foi incorporada por Gal Costa no seu show mais recente, A Pele do Futuro. Em Bahia Blues, Pitty canta os locais de Salvador que frequentou e diz: “Nunca é tarde demais / Pra voltar pro azul que só tem lá”. A cor é diferente, mas os versos lembram a poesia de um Gilberto Gil voltando do exílio em Back in Bahia: “Mar da Bahia, cujo verde vez em quando me fazia bem relembrar”.

“Resolvi contar uma história como os blueseiros fazem mesmo, relatando. Mas pensei muito em Gil e Caetano no processo. Inconscientemente, faz sentido essa conexão”, diz a cantora.

Em Bicho Solto, Pitty canta: “Eu me domestiquei para fazer parte do jogo / Mas não se engane, maluco, continuo bicho solto”. A música tem ainda um sample (um trecho cortado e reutilizado) de uma canção de Dorival Caymmi, Noite de Temporal. O sample foi popularizado em larga escala pelo hip-hop, mas Pitty lembra-se da primeira vez que utilizou a técnica. “Numa dessas ondas de composição, Rafael (Ramos, produtor dos discos da cantora) levou em casa a primeira demo que mandei para ele, antes do Admirável Chip Novo (2003). Tinha 18 músicas ali, eu não lembrava de muita coisa. Sol Quadrado, esse reggae do disco de agora, e também uma outra música que tinha um sample de Pink Floyd. Eu não lembro como foi (risos). Estava lá no meu quartinho em Salvador, pirando nessas coisas. Isso é o Matriz. É algo que já estava lá, mas que é contemporâneo, e estabelece esse diálogo.”

A faixa seguinte, Noite Inteira, é um rock com elementos percussivos acentuados ligados a ritmos latinos, além de ter a participação de Lazzo Matumbi, referência para Pitty desde sua infância. “Ele sempre foi uma voz significante dos blocos afro e dessa parte da cultura baiana, e quando essa música surgiu, pensei nele imediatamente”, explica. Mais à frente, Te Conecta traz a levada do rocksteady, ritmo jamaicano precursor do reggae.

Para O Grande Amor é a faixa de Peu Sousa, guitarrista parceiro da cantora, morto em 2013. “Quando vi que o álbum tomava essa direção da Bahia, quis botar uma canção dele”, diz Pitty. Submersa é onde ela aborda a maternidade mais de perto. “No começo, foi difícil sair do casulo. Essa foi a primeira música que escrevi pensando que precisa voltar para a minha própria identidade. Agora estou mais de boa”, garante. “Mas tudo muda, até o tempo.” Com Matriz, Pitty faz um valioso acréscimo e dá uma bela lufada de diversidade no seu repertório.