Périplo em torno do conceito de cultura

Não é fácil definir o que é cultura. Qual a sua natureza ontológica? Qual o seu perfil epistemológico? Qual a sua dimensão axiológica? Dependendo do prisma ótico, da postura ideológica e da cosmovisão crítica, cada uma dessas perguntas poderá ter as mais variadas respostas.

Comecemos por consultar o dicionário. Entre outras definições de cultura, selecionamos estas: “aplicação do espírito a uma coisa”; “desenvolvimento que, por cuidados assíduos, se dá às faculdades intelectuais do ser humano”; “estudo”; “desenvolvimento do intelecto”; “civilização”; “sistema de idéias, conhecimentos, técnicas, artefatos, padrões de comportamento e atitudes que caracterizam uma determinada sociedade”; “amor ao saber, esforço contínuo para desenvolver a educação científica, artística ou literária”; “resultado desse esforço”; “conjunto de atitudes, instituições e valores de uma sociedade”.

Temos aí um autêntico “bazar persa” de definições. O que dá bem a medida da complexidade do termo cultura. A verdade é que todas as definições consignadas acima são ainda pálidas, imperfeitas, incompletas. Chegam mesmo a dar-nos a impressão de que confundem alhos com bugalhos, para utilizar uma expressão rasteira.

Avancemos, pois – e aprofundemos – a nossa caminhada nas entranhas desse conceito multifacetado, polimorfo, proteico que é – Cultura. E uso a maiúscula para mostrar, pela própria configuração gráfica, a sua grandeza e dignidade.

A cultura tem uma base ampla. Poliedro ciclópico, cada uma das suas faces mostra diferentes aspectos de natureza física, biológica, psicológica e histórica, cujo conjunto define, estrutura e singulariza cada agrupamento humano.

Pioneiros em quase todas as áreas do conhecimento, são os gregos que nos oferecem a primeira concepção da cultura. Assim, para Platão e Aristóteles, ela significa fundamentalmente a formação, a melhoria, o refinamento do homem, dentro de uma moldura naturalista. Corresponderia a uma “paideia” que os romanos, séculos mais tarde, traduziram pelo termo “humanitas”.

Esse conceito clássico de cultura como processo de edificação do ser humano excluía do seu âmbito as atividades por assim dizer utilitárias. Assumia, portanto, um caráter preponderantemente aristocrático. Entronizava a “vida teórica”, dedicada à pesquisa e a busca da sabedoria.

O pensamento medieval (Abelardo, Bacon, Duns Scoto, Alberto Magno, São Tomás de Aquino, Occam) conserva em parte essa postura elitista, aristocratizante, mas deixa à margem, minimiza o aspecto naturalista. Assim, as artes do “trívio” são a gramática, a retóric e a dialética. E as do “quadrivio” são a aritmética, a geometria, a astronomia e a música.

O Renascimento volta a restabelecer o primado do “naturalismo” cultural, deixando de lado a posição por assim dizer contemplativa e dando ênfase ao lado ativo, dinâmico, da sabedoria humana. Daí a posição de um Pico della Mirandola, para quem “só através da cultura chega o homem à sua realização completa, tornando-se verdadeiramente um microcosmos no qual o próprio macrocosmos encontra a sua perfeição”.

E o brilhante platônico, no seu admirável “discurso sobre a dignidade do homem, sustentava, enfatizando justamente o primado do saber: “Tu, homem, liberto de quaisquer limites, tu mesmo fixarás os limites da tua natureza. Como autor e modelador de todas as coisas e de ti mesmo, poderás assumir a forma que preferires. Tu terás o poder de te denegerares nas formas inferiores de vida, que são bestiais. Mas terás também o poder, por tua alma e teu intelecto, de atingir formas superiores, quase divinas…”.

As concepções renascentistas, que tinham no florentino o grande intérprete, insistiam ainda, contudo, na feição aristocrática da cultura, manjar fino destino a poucos privilegiados.

Essa ótica francamente elitista, se bem que respeitável, começa a desmoronar com o advento do Iluminismo (Kant, Hegel, Voltaire, Diderto, os enciclopedistas), defendendo a necessidade de uma difusão ampla – massificação, diríamos contemporaneamente – do produto cultural, que não pode ser propriedade exclusiva de raros eleitos, de uma elite (o escol da sociedade), devendo pelo contrário ser o instrumento, a ferramenta de renovação da vida do grupo social e do indivíduo, estendendo-se, comunicando-se a todos os homens ou, pelo menos, a segmentos cada vez mais amplos da humanidade. Universalizando-se, pois.

Por sua vez, os movimentos românticos tentam em vão, com suas posturas reacionárias e antiliberais (não estou analisando aqui suas qualidades estéticas ou literárias), reviver o conceito aristocrático da cultura. Porém, paralelamente a essa tentativa – frustrada, diga-se logo – assiste-se ao paulatino alargamento do próprio universo cultural, que se enriquece com novas disciplinas científicas que se definiam, estruturavam e ganhavam finalmente autonomia. É então que surge o enfoque “enciclopedista” da cultura, que passa a significar conhecimento amplo, geral e sumário em todos os campos e latitudes do saber.

Benedeto Croce rebela-se contra essa concepção. Já no limiar do século passado, o magistral filósofo e esteta lamenta “que tenha prevalecido nos últimos 50 anos (estas palavras foram escritas em 1900) um tipo de homem que tem incontáveis conhecimentos, mas não possui o Conhecimento; que está restrito a um pequeno círculo de fatos ou dissipado entre fatos das mais variadas espécies, mas que, assim dissipado e assim restrito, está desprovido de uma diretriz ou, como se diz, de uma fé”.

E eis-nos em pleno século XX. Ele exigirá uma nova abordagem, a ser feita oportunamente, “Deo volente”.

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