Em 80, era a Anistia, a Abertura, uma liberdade pequena, ainda economicamente cerceada. Nos versos de Achados e perdidos, metaforizada como uma ?pequena marginal dessa imensa avenida Brasil?. Liberdade em nome da qual tantos ?se entregaram por um novo dia?, e que, do seu jeito, só valia também em tom maior, quando ?o nosso coração sinta/através do respeito/o que é ser/profundamente/ uma pessoa da maior liberdade?. Então, era bem mais do que questionar aquela propaganda oficial na introdução de A marcha do povo doido, que, em tons carnavalescos, falava sério: ?Anistia que não permitiu ao anistiado ser reintegrado a seu trabalho?.
Ah, o trabalho. Tivesse Vargas um Gonzaguinha, e seus discursos sairiam do populismo com uma graça, um lirismo e uma verdade inimagináveis para um caudilho. ?Eu acredito é na rapaziada/Que segue em frente e segura o rojão?, samba, cheio dessa fé que é para poucos, em E vamos à luta. Ou Trabalho e festa, que prega o direito ao prazer associado ao ato laboral: ?Pro homem pra quem o trabalho é festa/todo dia é de festa, é mais mió?. Eita nós…
E (re)conhecendo a intimidade dos tais sentimentos humanos por onde os tais relacionamentos, com uma feminilidade digna de Chico Buarque, ganham voz em forma de Pontos de interrogação, Mulher e daí, Grito de alerta, Minha amada doidivana, Românticos do Caribe, Diga lá, coração, Sempre em teu coração, O começo, Santa Maravilha… É, não dava pra segurar tanta poesia que, após uma noite de êxtase, buscava a dor das manhãs, tendo que começar tudo outra vez, sempre.
Gonzaguinha representava seu País com o suicídio profissional e santo de um ?João do Amor Divino? que já morrera… Pra logo depois dizer que ?acreditava na vida? e que ?pensava que era um guerreiro?, no sambão autobiográfico Com a perna no mundo. Ao sair dos cueiros dos padrinhos, primeiro foi ter com os bambas do Estácio. Depois, estudante de Economia, foi ser do MAU -Movimento Artístico Universitário, ao lado de Ivan Lins, Aldir Blanc e outros bons. E desse mal do bem, foi soltar o gogó de eterno aprendiz, sendo censurado e condenado a viver sob o estigma de cantor de protesto.
Uma injustiça. Musicalmente, como poeticamente, Gonzaguinha também explodia sua liberdade, misturando sons, cordas e guitarras, rocks, sambas, valsas, xotes e maracatus, como quem mistura as classes e as raças que conheceu entre o pai (adotivo, dizem alguns), o sempre viajante Gonzagão, e a mãe (esta sim adotiva, sua mãe de carne morrera quando tinha dois anos) Dina, sempre à sua espera no morro do São Carlos. ?Juntos estamos no palco/das ruas nas grandes cidades?, declarava, renovando seu discurso brechtiano em Artistas da vida. A injustiça era limitar uma obra tão vária e bonita. Uma luta e uma alegria de ?ser, fazer e acontecer? que continuam necessárias, ?simples como a água?, de mergulho numa vida ?em nossas mãos?, para cada um construir ?a coisa mais maior de grande?, a pessoa, por mais que muitos se esqueçam disso.