Paraná, 150 anos (2)

No dia 20 de fevereiro de 1890, a bordo do vapor Cittá di Roma, partia de Gênova um pequeno número de pioneiros com destino ao Brasil, para aí iniciar uma colônia socialista experimental.

Esta foi a abertura de um dos ensaios escritos pelo engenheiro agrônomo, homem de idéias e sonhos, o italiano Giovanni Rossi (1856-1943), fundador da Colônia Cecília, um autêntico laboratório de experiências socialistas e anarquistas plantado em 1890 no então pacato município de Palmeira, na região sul do Paraná. O admirável projeto teve curta duração e em menos de cinco anos estava desfeito.

O relato sucinto, mas recheado de preciosas informações sobre comportamentos, vivências e reações de seres humanos, escrito pelo próprio Rossi, encontra-se no livro “Colônia Cecília e outras utopias”, publicado na coleção Brasil Diferente, da Imprensa Oficial. O núcleo era formado por intelectuais e trabalhadores urbanos de diferentes profissões, sem a menor experiência em agricultura, mesmo assim dispostos a iniciar o cultivo da terra “com o intuito de provar para si mesmos e para os outros, se e como um grupo viveria sem leis e sem dono”.

Nos primeiros dias de abril de 1890 os anarquistas chegaram à terra que deveriam cultivar, mas como não havia leis nem patrões, cada um deles devia fazer as coisas segundo sua própria compreensão. Rossi conta uma passagem interessante, quando um fabricante de massas pediu a um companheiro que o ensinasse a capinar. “Aqui não se pode ensinar ninguém. Cada um faz como bem entende, respondeu o velhote, julgando-se assim um anarquista”, escreveu, acrescentando um incontestável lamento: “Pobre anarquia, como, naquela época, sua concepção ficou rebaixada”.

Rossi referiu-se também ao sistemático espírito de contradição que reinava entre os moradores da Cecília, que perdiam muito tempo em discussões infindáveis. Tornou-se comum entre eles falar com voz altíssima, até para dizer as coisas mais inocentes, para que as soubessem os vizinhos da esquerda e da direita. As reuniões noturnas transformaram-se numa espécie de clube revolucionário e as discussões eram ouvidas a um quilômetro de distância. O idealista italiano diz, porém, que mesmo nesse clima de aparente violência e gritos “nunca foi desferido um murro sequer”. Se isto tivesse ocorrido, Rossi assegura que todos se sentiriam envergonhados e desonrados.

A vida intelectual era, entretanto, muito pobre, admitiu o próprio Giovanni Rossi, ele mesmo um refinado intelectual reconhecido em seu país, redator principal de um jornal de idéias socialistas e humanistas na cidade de Pisa, onde nasceu. “Instrução, música, teatro, bailes, diversões de vários gêneros, gostaríamos muito de tê-las, mas até agora não foi possível. O trabalho produtivo nos tem absorvido totalmente. Nem mesmo pudemos pensar em melhorar nosso vilarejo, que terá uma aparência bem mais simpática quando tiver em sua frente um pequeno bosque e canteiros floridos”.

Contudo nem o trabalho produtivo, segundo Rossi, foi realmente produtivo, porque já no final da experiência anarquista da Colônia Cecília sequer havia dinheiro para pagar os impostos que o fisco estadual fazia questão de receber. Nos campos havia rivalidade e ressentimentos entre os homens. Entre as mulheres, encarregadas do serviço doméstico, gulodice, pequenas invejas, arrogâncias e fofocas, anotou o arguto cientista social.

O escritor Afonso Schmidt escreveu uma bela reportagem literária sobre a pequena epopéia realizada em terras paranaenses por aqueles europeus tocados pelo ideal de iniciar a construção de uma nova humanidade. O título escolhido foi simplesmente “Colônia Cecília”, e a primeira edição data de 1942, um ano antes da morte de Giovanni Rossi, na Itália. A extinta Editora Brasiliense reeditou o livro em 1980, acrescentando o subtítulo “romance de uma experiência anarquista”.

O romance é acompanhado por uma rica e oportuna introdução assinada por Hernani Donato, experimentado autor de romances baseados em ciclos históricos e econômicos importantes como a mineração, a erva-mate e o café, entre outros. A esta altura é preciso lembrar a excelente contribuição de Newton Stadler de Souza, também autor de um romance histórico sobre a Colônia Cecília.

A licença para a implantação da experiência anarquista no Brasil foi concedida pelo imperador Pedro II a Giovanni Rossi, nos últimos anos da Monarquia. Há uma crença de que Rossi, que tornou-se amigo do grande maestro Carlos Gomes, quando este viveu em Milão, teve alguns encontros com o imperador numa de suas viagens à Europa. Afonso escreveu no prefácio à primeira edição que “no Brasil de 1889 a 1894, num período de transição entre a Monarquia e a República, com permissão do Sr. Dom Pedro II, se realizou uma experiência, embora frustrada, de um velho sonho da humanidade”.

O romancista lembra que na mocidade, o filósofo pisano escreveu um folheto para expressar sua utopia: “Aí está uma palavra que alguns de meus leitores, com certeza, só conhecerão no sentido sorridente que lhe é emprestado. Há uma velha tendência para dar-se a certos termos uma significação pejorativa, a fim de malsinar o pensamento que eles representam. Anarquia, por exemplo, que apenas quer dizer negação de autoridade, é repetida a cada passo como sinônimo de desordem. Casa de tolerância, cuja interpretação mais comum é de todos conhecida, referia-se inicialmente à loja maçônica, onde todas as idéias superiores deviam ser respeitadas, onde havia tolerância para todos os credos. Aqui mesmo no Brasil, durante a Monarquia e depois dela, a palavra república serviu para designar casa de estudantes, assim como quem diz Casa de Orates”…

Pressentindo o fim inglório da experiência, Rossi confessou que “a Cecília poderia acabar por iniciativa do governo brasileiro, ou por efeito da desmoralização que agentes provocadores do governo da Itália poderiam causar”. Nenhuma das hipóteses era impossível, já que Rossi tinha notícias que Roma insistia com o governo brasileiro a manter sob vigilância rigorosa os italianos de Palmeira. Sem perder o otimismo, Rossi anotou: “Entre as outras probabilidades sobre o futuro, há também a de que nossa comunidade continue a subsistir apesar de todos os obstáculos, conseguindo adaptar suas disposições interiores ao ambiente excepcionalmente desfavorável no qual ela se desenvolve. Nesse caso, acredito que conseguirá cada vez mais confirmar as observações feitas até agora, continuando assim a dar notícias sinceras de sua existência”.

Infelizmente o otimismo de Giovanni Rossi e de outros companheiros não vingou. Pouquíssimo tempo mais durou a experiência anarquista transplantada da culta Europa para os obscuros campos de Santa Bárbara. Desfeito o sonho, os habitantes da Cecília procuraram seu destino nas cidades próximas, a maioria em Curitiba. Giovanni trabalhou ainda alguns anos em Santa Catarina e Rio Grande do Sul, como agrônomo, e depois voltou à Pisa, onde faleceu em 1943.

Esta experiência humana, além dos grandes ensinamentos que permitiu à sociologia recolher ou confirmar, assim como inspirou belos romances históricos, serve como luva para realçar o significado da profunda observação feita por Afonso Schmidt, ele mesmo diligente cultor da filosofia da práxis: “Não se faz uma sociedade nova com homens emprestados de uma sociedade velha”.

O sábio Giovanni Rossi certamente assim o compreendia, mas até o fim de seus dias, por lealdade ao sonho de transformar o homem e o mundo, não teve sequer uma palavra de reprovação aos espíritos menos sensíveis que, malgrado a grandeza do sonho, contribuíram para seu desfecho melancólico.

Ivan Schmidt

é jornalista e escritor

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