Paraná, 150 anos (1)

Até 19 de dezembro, dia em que o Paraná comemora 150 anos de emancipação política, estarei usando esse precioso espaço para discorrer sobre alguns eventos históricos importantes do período, cabendo total responsabilidade pela escolha não necessariamente cronológica dos temas e as opiniões emitidas, nem sempre as mais autorizadas, a esse sofrível escriba. Espero que os leitores tirem algum proveito dessas anotações e, quem dera, animem-se a participar com suas próprias contribuições. Inicio pela Guerra do Contestado (1912-1916).

A bem da verdade não se pode afirmar que a Guerra do Contestado tenha sido ocorrência peculiar à história do Paraná, de vez que afetou muito mais o vizinho estado de Santa Catarina. Uma certa apropriação que os paranaenses têm feito do episódio está subordinada ao fato – esse sim de profunda relevância histórica – que a guerra propriamente dita teve início em território então paranaense com o choque havido nos campos do Irani, entre a força regular da Polícia Militar do Paraná, comandada pelo coronel João Gualberto Gomes de Sá Filho e os jagunços do monge José Maria.

É também impossível negar que José Maria somente deslocou-se para os campos do Irani, na jurisdição do município de Palmas, que se limitava com o Rio Grande do Sul, porque sua permanência no reduto do Taquaruçu tornou-se inviável diante da perseguição política que lhe foi movida pelo prefeito de Curitibanos, coronel Francisco Albuquerque. Ocorre que o reduto fora levantado sob a proteção do também coronel Henrique Almeida, ferrenho opositor do prefeito, em área de sua propriedade junto ao rio do mesmo nome.

Albuquerque tinha ligação próxima com o então governador Vidal Ramos, de quem era duas vezes compadre. Logo que percebeu o inusitado ajuntamento de pessoas no Taquaruçu, sob a liderança de um monge auto-proclamado irmão de João Maria, o santo do povo que encantara no Taió Grande e era venerado pelos habitantes dos rincões de Serra Acima, queixou-se ao governador que aquele núcleo populacional que crescia diariamente, representava séria ameaça à segurança do município e do próprio estado. Ainda mais, estando nas terras e sob a tutela de Almeida, ele próprio de olho na prefeitura de Curitibanos na eleição seguinte.

A ação do governo catarinense foi rápida. José Maria resolveu dissolver o reduto mandando as pessoas de volta às suas casas (os que ainda as tinham) e marchou com 40 homens escolhidos a dedo na direção do Irani, onde havia morado antes e conhecia bem. Aliás, Miguel Lucena de Boaventura (esse era seu nome real) passara algum tempo em Palmas como praça do Regimento de Segurança do Paraná. Dizem alguns que o agora intitulado monge vira-se forçado a desertar para escapar da ira do pai da jovem palmense que teria deflorado…

Nos primeiros anos do século XX houve entre os dois estados uma rumorosa questão de limites. Santa Catarina jurava que o Paraná se apossara de áreas que não lhe diziam respeito e exigiam a devolução. De fato, em 1904 o STF condenou o Paraná, mas seus advogados recorreram e conseguiram sustar a execução da sentença.

O sociólogo Maurício Vinhas de Queiroz no livro Messianismo e conflito social (Editora Ática, SP, 1981) diz que havia duas grandes frentes extrativas de erva mate, sediadas em União da Vitória e Canoinhas: “O trecho violentamente disputado por uns e por outros, riquíssimo em ervais nativos, compreendia os vales inteiros do Timbó e do Paciência. Os catarinenses, que ocupavam as suas cabeceiras e grande parte de seus cursos, ambicionavam chegar até as margens do Iguaçu e dominar inclusive União da Vitória. O posto avançado dos paranaenses era Vila Nova do Timbó”.

Aí perto havia se estabelecido o antigo maragato Demétrio Ramos, chefe de algumas dezenas de homens armados. Agia por conta do governo catarinense, de quem recebia recursos. “Por outro lado, na mesma área, o Paraná começou a armar paisanos para reforçar as fileiras de sua força pública. Houve, de parte a parte, ameaças de pilhagens e depredações em fazendas de gado e ervais”, acrescenta Vinhas. A erva mate, principal produto destinado à exportação, seguia para Joinville a fim de ser beneficiada em engenhos locais e, daí ao porto de São Francisco do Sul. O trajeto feito desde Canoinhas cortava um trecho paranaense onde o governo estabelecera o posto fiscal do Rio Preto, algum tempo depois atacado pelas forças de Demétrio Ramos e Aleixo Gonçalves de Lima.

Embates e escaramuças seguiram-se em ritmo intenso, de parte a parte, mantendo em pé de guerra a população de Serra Acima, recrutada e/ou dispensada das milícias caboclas, ao sabor de interesses políticos e econômicos momentâneos.

No início de outubro de 1912 José Maria encontra-se no Irani, abrigado na casa de Fabrício Ribeiro das Neves. Vinhas comenta que com a repercussão do boato da restauração da monarquia, “o governo do Paraná recebeu com extrema inquietação as notícias do movimento em torno do novo monge”. Houve quem afirmasse que se tratava de manobra de Santa Catarina a fim de guarnecer o Contestado com tropas federais e garantir assim a execução da sentença do STF no caso dos limites. “Um artigo de fundo sobre a questão dos limites, aparecido em jornal paranaense de larga circulação, fala de explorações em torno do caso do monge e que o Paraná se levantará como um só homem para defender seus direitos, embora odeie derramamento de sangue”, escreveu ainda o pesquisador referindo-se ao valente editorial do Diário da Tarde, no dia 1.º de outubro.

A mobilização do Regimento de Segurança foi imediata e o coronel João Gualberto seguiu para o município de Palmas, à frente de três companhias e uma seção de metralhadoras. No dia 17, no meio da tarde, chegou aos extensos campos de Palmas fixando o acampamento no lugar chamado Horizonte. Daí despacha um pelotão de averiguação chefiado pelo tenente João Busse, guiado por vaqueanos da região que conheciam o paradeiro de José Maria. Busse logo remete informações ao coronel dando conta que o monge declara nada ter contra o Paraná e, se lhe for permitido, retira-se em paz para Santa Catarina. Ao receber a carta Gualberto escolhe 40 homens e, de pronto, ordena a marcha que inclui uma metralhadora alemã Maxim Nordenfelt.

Na madrugada de 21 alcança o local onde se encontrava o pelotão avançado e anuncia a decisão de atacar na manhã seguinte. O prefeito de Palmas, coronel Domingos Soares, e o próprio chefe de Polícia do Paraná, que acompanhara a tropa, realizam grande esforço para dissuadir o comandante de sua intenção. Ele, contudo, mostra-se irredutível. Afinal, mandara trazer laços de corda para com elas manietar os jagunços e conduzi-los às prisões da capital. Nenhuma força o fará desistir do intento, é o que declara . Soares, afamado por sua habilidade e tato na condução de questões políticas, diz que lava as mãos. Em resposta, ouve de Gualberto a seguinte admoestação:

? Pois, coronel Soares, faça de conta que estamos de relações cortadas, e eu vou sempre assumindo toda a responsabilidade.

Pelas três horas da madrugada o regimento paranaense começa a marcha. Ao cruzar um riacho, sob trevas intensas, a metralhadora conduzida pelo anspeçada Paixão, resvala e é encoberta pela torrente. Começa aí o calvário de João Gualberto, pois no momento em que foi mais necessária a arma simplesmente emperrou o mecanismo e deixou de funcionar.

Em menos de meia hora de combate, em meio à espessa fumaceira que ocultava a luz nascente, o matraquear das armas de fogo, palavras de comando e gritos agoniados de pavor, tombaram dezenas de homens de ambos os lados. Entre eles, os dois comandantes. De Boaventura ignora-se a idade certa. O coronel João Gualberto faria 38 anos no mês seguinte.

Assim começou a Guerra do Contestado.

Ivan Schmidt

é jornalista e escritor .

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