Otto Dix e a civilização putrefata

O pintor, desenhista, artista gráfico e gravurista alemão Otto Dix tem uma posição curiosa dentro do expressionismo alemão, ao lado de outro artista emblemático, George Grosz. Como este, Dix é um expressionista que migra para o extremo realismo da corrente Nova Objetividade. Os trabalhos de ambos diferem do grupo Die Brücke (A Ponte), de Ernst Ludwig Kirchner e Erich Heckel e do Der Blaue Reiter (O Cavaleiro Azul), de Wassily Kandinsky e Franz Marc, em parte porque mesclados de elementos futuristas. O expressionismo de Grosz e Dix, mais o de Max Beckmann, tem viés peculiar, de realismo, às vezes, caricatural. No caso de Dix e Grosz há a ênfase na crítica política e social, resvalando com freqüência para o macabro. Com este realismo exacerbado, Dix destoa dos expressionistas propriamente e como estes ganha a repulsa de nazistas que o consideravam “degenerado” e da esquerda porque não se enquadrava no realismo socialista.

O que torna Dix ainda mais original é que produziu até sua morte, nos anos 60, sem se corresponder com outras vanguardas e sem que seu trabalho perdesse força e originalidade. Passou longe do cubismo, surrealismo e do abstrato. O seu legado é a visão macabra da civilização, através do homem na guerra e na miséria das cidades em crise. De onde vem a expressão macabra em Dix? A resposta simplista é que ele conviveu por um tempo de forma tão íntima e intensa com a morte, que as feições dela o perseguiriam para o resto de sua vida. Dix encontrou-se com a Ceifadora quando esteve no interior de um dos infernos do século 20, a Primeira Guerra Mundial.

Ele lutou no fronte, em que milhares de pessoas morriam de bala, doenças, desespero ou loucura. E como artista, não se limitou a observar as cenas macabras de homens mutilados, sem braços ou pernas, mortos sem cabeças, ou cabeças sem corpos, crânios descarnados. Ele retratou tudo isso com método e obstinação. A verdade é que se exige além de talento e técnica, um estômago de aço para olhar para estas cenas e desenhá-las pacientemente, reproduzi-las no local em meio a fome, canhonaços e desespero.

E Otto Dix fez isto entre 1915 e 1917, em diversos campos de batalhas na Bélgica, na França e na Rússia. Nestas frentes, Otto Dix fez aproximadamente 600 desenhos, considerados verdadeiro documentário do horror da guerra. Um trabalho que resultou em uma série de gravuras produzidas entre os anos de 1920 e 1924 e que foram, em 1924, editadas em Berlim e comparadas com a série Desastres da Guerra, de Francisco Goya. Pois bem, 86 destes trabalhos estão em Curitiba e podem ser vistos, do dia 1.o até o fim de agosto, na Casa Andrade Muricy, em uma exposição organizada pelo Instituto de Relações Culturais com o Exterior de Stuttgart e o Instituto Goethe.

A exposição Otto Dix – Gravura Crítica 1920-1924 – A Guerra – Ciclo de Águas-fortes é uma oportunidade para se ter uma visão do horror da guerra através da técnica deste artista, que além da guerra, também se empenhou em retratar os sobreviventes do conflito, no lado alemão. Se no fronte encontrou corpos mutilados e uma infinidade de cadáveres, ao retornar da guerra deparou-se com grupos marginalizados, desempregados famintos, oficiais aleijados se esmolando nas ruas, entre outras cenas da mesma forma degradantes. Em sua pintura, Dix chegou ao requinte futurista de esboçar seres humanos tentando viver sem pernas e braços, com as funções mantidas por tubos, fios e canos, mas demonstrando que além de suicida, a humanidade é otimista. Os três homens nestas condições tentam se divertir jogando cartas, no célebre quadro Inválidos de Guerra Jogando Cartas, que não está na exposição.

Ao voltar da guerra, Dix não conseguiu ver o mundo com olhos que não fossem uma mistura do bizarro com o macabro. E o conceito de sexualidade beirou o de uma bestialidade degradante. Nos trabalhos de Dix, raramente a mulher é glamurosa, se é que alguma delas foram retratadas assim. Quando não desproporcionais e desgrenhadas em uma voluptuosidade ensandecida, são divas obscenas que se permitem tocadas por velhinhos corrompidos pela luxuria. De qualquer forma, são mulheres caricaturais, muitas vezes repulsivas, ou então nada simpáticas, como o retrato da jornalista Sylvia Von Harden, que beira o deboche. O quadro mostra uma mulher magra sentada à uma mesa a fumar, cabelos curtos, boca hirta, monóculo, vestido xadrez rubro-negro. Os homens, por sua vez, excetuando os auto-retratos, ou são monstruosos, imbecis ou revelam uma expressão de avareza cruel, um alheamento da realidade próprio de quem já não acredita mais em uma realidade aceitável. Quem passou pelas trincheiras e sobreviveu certamente nunca mais seria o mesmo.

A exposição

Mas para Curitiba vêm parte da obra gráfica de Dix. Este trabalho surge com mais força a partir de 1920. Até então ele se concentrou nas pinturas e produziu apenas um numero reduzido de xilogravuras e alguns trabalhos futuristas, de 1919, aos quais pertence a xilogravura Apoteose. Nesse momento, surge uma série de litografias e águas-fortes, nas quais a concepção expressionista-futurista dá lugar a um novo trabalho que se identifica mais com as suas pinturas. As gravuras da exposição concentram-se neste segmento da obra de Otto Dix. Como o quadro Rua de Praga. Ou a gravura em ponta-seca Rua, com suas figuras horripilantes, que lembram Os Aleijados de Pieter Bruegel, e sua rigorosa composição em diagonal.

Na série de ex-combatentes mutilados, encontra-se Vendedor de Fósforos, criada com uma técnica mista, combinada de ponta-seca e água forte. Eugen Keuerleber, do Instituto de Relações Culturais com o Exterior, observa que a composição do inválido cego, acocorado no chão com os braços e as pernas amputadas, serve de alerta para os transeuntes que procuram fugir de cenas que lembram a miséria. A composição diagonal se apresenta como uma espécie de via de fuga. A expressão do rosto do mutilado, com barba de sargento, óculos de cego e ouvidos em forçosa atitude de escuta, parece lembrar às pessoas à sua volta dos tempos terríveis que eles passaram, que agora querem esquecer, mas a presença do inválido insiste em recordar.

Entre os trabalhos que chegam a Curitiba, há águas fortes sobre o circo, que revelam o trabalho duro destes profissionais, atrás da bela aparência que eventualmente o circo sugere. O circo é uma das obsessões de Dix, sobre o qual ele produziu um segundo ciclo de águas-fortes, publicado em 1922. Um outro ciclo, como as do ciclo Circo, e denominado Morte e Ressurreição, traz trabalhos como Soldado Morto em Vias de Decomposição, no qual o soldado jaz entre flores vicejantes e um emaranhado de pequenos animais. Neste ciclo, encontra-se A Barricada, na qual um atirador usa seus companheiros mortos como barreira de proteção contra disparos de inimigos. E há ainda O Suicida, que apresenta um homem que acabou de se matar, acompanhado por seu corpo astral que tranqüilamente lê um jornal.

Mais tarde, Dix explicou a sua obsessão pelos temas macabros como inspirados pela guerra. “As coisas são assim – nem nos damos conta, não nos damos conta mesmo, quando jovens, de que no íntimo ainda estamos carregando um peso. Durante anos a fio, no mínimo durante dez anos, eu sempre tive esses sonhos, nos quais me via obrigado a engatinhar por casas em ruínas, corredores pelos quais eu quase não conseguia passar. As ruínas apareciam constantemente em meus sonhos… Não posso dizer que a pintura tenha sido um ato de libertação para mim”. A libertação destes sonhos macabros não ocorreu através da pintura, mas da água-forte, na qual encontra a possibilidade de um dimensionamento e tratamento amplos do tema guerra, sob a forma cíclica.

Os desenhos feitos no fronte tinham a utilidade relativa de modelos. Dix os transformou em novos modelos a partir da memória atormentada. O resultado do esforço foi um ciclo de um trabalho forte, que transmite a idéia de guerra bem próxima do horror que ela realmente é, com realismo verdadeiro e raro. Dix mostra os personagens do fronte, seja em que lado estão: não passam de pobres soldados, escorchados, feridos, morrendo enlouquecidos, pelo gás tóxico, pela fome e balas adversárias. E, como personagens secundários e não menos importantes, civis desabrigados e famintos, esfarrapados.

Há quem considere que Dix fez um relato do horror da guerra no lado alemão, reduzindo de certa forma o alcance do trabalho do artista. Na realidade, o que ele fez um relato da estupidez da guerra, do desperdício de vidas, da incoerência da política bélica que em nome de vitórias, coleciona derrotas para a humanidade. As pessoas que ele retrata são uma parte da humanidade e a putrefação de corpos e órgãos em meio a lama representa o impasse e selvageria a que chega a civilização de tempos em tempos. No caso de Dix, as cenas são do começo do século 20. Mas na realidade, podem servir de comentário para o horror de todas as guerras e neste sentido ser um libelo humanista. Afinal, depois da Primeira Guerra Mundial vieram muitas outras guerras, com uma série interminável de horrores.

Ainda hoje a guerra é um problema atual. Afinal, não se pode esquecer que a a Primeira Guerra Mundial foi sucedida pela Guerra Civil Espanhola, por sua vez sucedida pela Segunda Guerra Mundial, a Guerra na Coréia, a do Vietnã, sangrentas guerras coloniais na Ásia e na África – a guerra fratricida em Angola vitimou 500 mil pessoas, durante 25 anos, deixou milhões de pessoas amputadas pelas minas terrestres e não se sabe com segurança se realmente acabou. Enfim, uma série interminável de selvageria, que inclui conflitos como os da Nigéria, Biafra, Bangladesh, Índia, Paquistão e em todo o mundo afora. Somente em 1991, houve 46 guerras. O ano passado a guerra do Afeganistão tomou a dimensão de algo redentor enquanto não passou de uma carnificina que vitimou velhos, mulheres e crianças. E agora mesmo o mundo é bombardeado com informações sobre o eterno conflito do Oriente Médio que parece ter apenas a finalidade de produzir cadáveres e vítimas que de tão numerosos perdem a capacidade de causar impacto no coração e nas mentes das pessoas.

Otto Dix morreu em 25 de julho de 1969, em Singen am Hohentwiel. O seu trabalho faz parte da história da cultura. Mas o tema que o perseguiu continua presente entre nós. E ver as cenas que retratou nas frentes de batalha serve também para nos lembrar que o “horror”, ao qual se referiu Joseph Conrad em Heart of Darkness (Coração das Trevas), e serviu de epígrafe para T. S. Eliot em seu célebre poema The Hollow Man (Os Homens Ocos) continua presente. A civilização deixa, todos os dias, um rastro que insiste em não se apagar, de vítimas putrefatas que insistimos em ignorar. O artista Otto Dix não as ignorou.

Edilson Pereira

é editor em O Estado do Paraná.

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