Os olhos da raposa e a colônia

A vida obscura do poeta Bento Teixeira

Enquanto a arte imita e vida e, por sua vez, a vida imita a arte, criando um ciclo interminável, a leitura de determinados textos nos faz viajar por lugares desconhecidos e, muitas vezes impensáveis. Este é resultado da leitura do romance Os Rios Turvos, de Luzilá Gonçalves Ferreira. Trata-se de um romance-histórico que tem como enredo, a história de Bento Teixeira, o poeta da Prosopopéia e sua belíssima esposa Felipa Raposa. Aliás, é muito mais que isso, é pelos olhos e perspectiva da Raposa que Bento Teixeira é esquadrinhado. O romance se inicia com o relato da delação de Bento Teixeira, feita por Felipa ao visitador do Santo Ofício Heitor Furtado de Mendonça. Segundo a historiografia literária, Bento Teixeira nasceu em Lisboa em 1561, viveu no Brasil e foi preso e deportado para Lisboa em 1595. Sua mãe, descendente de judeus, fugiu para o Brasil por causa da inquisição a qual perseguia os cristãos-novos e suas práticas judaizantes.

Sendo assim, a autora do romance abarcou esta vida medíocre e, ao mesmo tempo agitada, do poeta para romanceá-la. Bento Teixeira é um homem em conflito entre a sua descendência judaica e a sua educação cristã. Considerando que Bento freqüentava o Colégio dos Jesuítas no Espírito Santo e, após a morte de seus pais, já na Bahia, ele e seu irmão foram acolhidos pelos padres da mesma Companhia de Jesus. O conflito torna-se ainda mais significativo quando Bento se casa com dona Felipa Raposa, cristã-velha, de família tradicional. Seu amor por Felipa era imenso e destruidor. Por causa dos ciúmes de Felipa, Bento mudou-se várias vezes (Iguarassu, Olinda, Cabo de Santo Agostinho), terminando por assassiná-la, fato este que remete a Manuel Bandeira em seu poema Tragédia Brasileira. Deste modo, Bento reinicia suas fugas, e é isto que ele faz constantemente enquanto personagem, fugir de sua sina.

Outro aspecto peculiar ao romance é o fato de que a autora é particularmente atenta aos detalhes da natureza presente naquele pedaço do País ainda quase virgem. E é da natureza que ela retira o título quando aponta: “de que fonte limpa, fizera brotar aquela água turva” (pg.15), ou “um riacho claro cortava a estrada antes da entrada da vila…” “…aquele mesmo riacho penetrava na vila, encontrava o manguezal ao pé da colina, beirava as casas, despontava adiante negro de lama, continuando o seu percurso através das matas, agora irremediavelmente sujo.” (45/46). Significando a pureza intacta da natureza, no caso o jovem casal, que se torna maculado ao ter contato com as mazelas reguladoras da sociedade. E o rio pode significar também o aspecto cíclico da vida. Assim, a natureza prossegue nos vários tipos de flores que Felipa colhe na mata ou recebe de presente. É importante frisar que a descrição destes espécimes está presente nos Diálogos das Grandezas do Brasil, obra atribuída por alguns historiadores do século XIX, a Bento Teixeira. No entanto, devido talvez a controvérsias, a autora incluiu sutilmente o nome do provável verdadeiro autor dos Diálogos…, Ambrósio Fernandes Brandão, como um de personagens que fizeram companhia imaginária a Bento quando este estava preso em Olinda: “Ambrósio Fernandes Brandão, capitão de uma companhia de Infantaria, que se oferecera para depor a seu favor…” (pg 188).

Retomando, já que o romance é permeado por armadilhas deste tipo, à dona Felipa Raposa deve-se a escritura desta obra e ela pode ser avaliada pela ótica feminina. Por este prisma, o poeta tão solitário e misterioso acredita ter mais direito à poesia do que sua esposa. A ela, mulher e mãe resta ouvir, comentar e achar graça. Jamais criar. Sua criação é descartada e perigosamente esquecida próxima a um riacho de águas claras. Novamente aí a figura da água límpida e da natureza a ser descoberta, no caso Felipa. Mas ela foi deixada para trás, em mais uma fuga de Bento. Além disso, é interessante observar no romance, a atuação do Santo Ofício nos países recém colonizados e o terror causado àqueles que dele fugiam. Este é um assunto não muito explorado em termos de história oficial do Brasil, mas que tem encontrado bastante destaque em Romances como Os Rios Turvos.

Além deste aspecto, a autora chama a atenção do leitor para a intertextualidade presente, a qual remete para Gil Vicente, Camões, o Valeroso Lucideno e os Diálogos das Grandezas do Brasil.

A história de Bento Teixeira e suas peripécias para livrar-se dos tentáculos da inquisição, do seu destino de judeu errante e das más línguas que feriam sua honra enquanto marido, formam a essência desse livro.

Ao final, fica a sugestão de uma leitura paralela ao romance, além dos textos citados, do trabalho do professor J. Galante de Souza Em Torno do Poeta Bento Teixeira, publicado pelo Instituto de Estudos Brasileiros da USP.

Obra – Os Rios Turvos

Autora – Luzilá Gonçalves Ferreira

Editora Rocco

Maria Helena de Moura Arias

é jornalista e mestre em Literatura Brasileira pela Universidade Estadual de Londrina.

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