Os filhos de Netuno

Conto

A superfície do mar estava espelhada. Mar de almirante, diziam. A quilha do navio a cortava como faca quente em manteiga gelada, suavemente.

O barco da Marinha pertencia à DHN Diretoria de Hidrografia e Navegação e cumpria uma missão faroleira (manutenção e conserto de faróis) ao longo da costa brasileira. Há 54 dias estavam no mar.

O Médico de Bordo transmite ao Imediato (a Marinha de Guerra do Brasil é a única do mundo que tem uma só palavra para identificar o 2.º em comando e criou até um verbo no jargão marinheiro: imediatar).

Considerando que as duas únicas revistas Playboy a bordo já tinham sido esfrangalhadas pela guarnição e a quase dois meses sem ver mulher a marinhagem estava sofrendo de “espermo-cefalia”. Explicava ao Imediato: é um processo orgânico em que o esperma produzido, em vez do caminho normal, é mandado pela vesícula seminal diretamente para a circulação sanguínea, atingindo o cérebro com muita rapidez. O motivo do desvio seminal, explicou, era a falta de mulher. Repetiu que as crises de “espermo-cefalia” estavam aumentando dia-a-dia.

O Imediato levou as preocupações do Medico de Bordo até o Comandante que chamou o Oficial de Navegação e pediu a este que localizasse um porto mais próximo, o que foi feito com presteza. O Imediato ordenou à Casa das Máquinas máxima velocidade o que foi feito com extremada rapidez, com rugido de motores e turbilhão dos hélices.

O navio ferveu: corta cabelo, lustra botina, lava uniformes, apara unhas, tudo em acelerado, marche. Onde tem porto tem puta, sabiam os marinheiros.

No comando de um 1.º Tenente os marinheiros desembarcam, em três escaleres. Sob um sol que começava e esquentar e pensando nas 12 horas da folga em terra, eles viram a multidão que se empilhava no pequeno porto e junto ao trapiche.

Desembarcam e ao encontro deles vem um cidadão gordo e suarento, com os braços abertos. Ele pára, a multidão que o seguia, também. Com voz embargada pela emoção, untuoso e tremelicante, ele começa a falar:

-Sou o prefeito desta cidade que se honra em vos receber, filhos de Netuno! Em nome do meu povo eu venho desejar a vocês nossas melhores boas-vindas, heróicos homens do mar … e prosseguiu o discurso Nós nos orgulhamos dos corajosos membros de nossa Marinha de Guerra, defensora e protetora de nossos mares e de vós, descendentes de Tamandaré e blá, blá, blá, ….

A marinheirada, ia ficando nervosa, de olhos nos relógios, o tempo passando. Em seguida falaram o Juiz de Direito discorrendo sobre a soberania de nossos mares e o Delegado, que garantiu a segurança em terra do contingente. O padre, em longa homilia, abençôou os marinheiros e, por extensão, todos os navios da Marinha, principalmente o porta-aviões “São Paulo”, por ter nome de santo.

A seguir, a Diretora do Grupo Escolar convidou visitantes e presentes a ouvir seus alunos cantando o “Cisne Branco”, por inteiro.

A rapaziada estava roendo as unhas, rascando o solo com as botinas, o tempo das 12 horas passando e aquela nhóla não tinha fim.

Em algum lugar da cidadezinha as mulheres das lâmpadas vermelhas também esperavam, ansiosas. Haviam se banhado, maquilado, flores nos cabelos, perfumes, as partes bem lavadas e nada dos homens.

O padre se aproxima do grupo e convida a todos para um lanche no Salão Paroquial, preparado pelas Irmãs da Ordem.

O pessoal se arrastou até lá como penitentes nordestinos. Nas longas mesas em paralelo diante de cada cadeira havia um pratinho, uns docinhos, um copo de refresco e um guardanapinho cor-de-rosa. Primorosa ordem de simplicidade, como cabe a religiosas fazerem as coisas.

A turma estava era para explodir, não se agüentando nos uniformes. Um dos marinheiros, mais descontraído que o comum dos marinheiros, fingindo calma piedosa, disse à freira na sua frente:

– Irmã, nós agradecemos o lanchinho, de coração. Mas não é isso apontou para as mesas que nós queremos comer agora….

Com o semblante em sincera frustração a religiosa pergunta ao grupo:

– Meus filhos, se vocês não comerem o que é que nós vamos fazer com tudo isso?

Houve um átimo de silêncio. O Oficial que comandava o grupo, num repelão, postou-se à frente dos marinheiros, o 45 de serviço engatilhado e disse em voz alta de comando:

Quem responder leva um tiro!

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