Os donos da terra

Verificamos a existência de pessoas insatisfeitas no tocante às questões agrárias (invasões de terras) no Brasil. Porém, acreditamos que devemos tomar a história do País como referência para entendermos o porquê deste desequilíbrio social. Vejamos algumas reflexões.

A primeira reflexão diz respeito à constatação de que o Brasil nasce da invasão. O historiador Boris Fausto (2003) explica que as expressões nascimento e descobrimento do Brasil “se prestam a engano, pois podem dar idéia de que não havia presença humana anterior à chegada dos portugueses ao Novo Mundo”. O autor refere-se aos índios, vítimas do abandono e de constantes descasos. O escritor Flavio de Campos (2002) explicitou que nos festejos das comemorações dos 500 anos do Brasil, o índio pataxó, em meio à missa que relembrava a primeira de 500 anos atrás, fez um discurso polêmico: “Foram 500 anos de sofrimento, massacre, exclusão, preconceito, exploração, extermínio de nossos parentes, aculturamento, estupro de nossas mulheres e de devastação de nossas terras, de nossas matas, que nos tomaram com a invasão”.

A segunda reflexão refere-se às capitanias hereditárias, divisão do Brasil em quinze lotes de terras, entregues aos chamados capitães-donatários, consolidando a colonização da nova terra. De acordo com Boris Fausto: “os donatários receberam uma doação da Coroa, pela qual se tornavam possuidores, mas não proprietários da terra. Isso significava, entre outras coisas, que não podiam vender ou dividir a capitania, cabendo ao rei o direito de modificá-la ou mesmo extinguí-la. (…) Do ponto de vista administrativo, eles tinham o monopólio da justiça, autorização para fundar vilas, doar sesmarias, alistar colonos para fins militares e formar milícias sob seu comando. A atribuição de doar sesmarias é importante, pois deu origem à formação de vastos latifúndios”. (grifo meu). Neste ponto está um dos nós do Brasil. É oportuno salientar que todas as atividades econômicas, desde o advento da colonização, estiveram direcionadas ao mercado externo, como explica o professor universitário Argemiro Brum (1991) ao se referir ao modelo econômico primário exportador (1500-1930): Não se cria um mercado interno mantendo-se a maioria da população pobre, constituída de índios, negros, mestiços e brancos, em condições precárias de subsistência e marginalizada do processo econômico. Nessa etapa da história brasileira, o poder econômico e o poder político estavam concentrados, de forma absoluta, nas mesmas pessoas: os latifundiários ou a aristocracia rural.

A terceira reflexão refere-se à Lei de Terras aprovada em 1850, que teve por finalidade prolongar, por iniciativa da aristocracia, a exploração escravista que começava a entrar em colapso devido à pressão da Inglaterra por intermédio do Bill Aberdeen, que reprimiu o tráfico internacional de escravos em 1845, e da Lei Eusébio de Queirós, que extinguiu o tráfico negreiro para o Brasil em 1850. Boris Fausto afirma que “a Lei de Terras foi concebida como uma forma de evitar o acesso à propriedade da terra por parte de futuros imigrantes. Ela estabelecia, por exemplo, que as terras públicas deveriam ser vendidas por um preço suficientemente elevado para afastar posseiros e imigrantes pobres. Estrangeiros que tivessem passagens financiadas para vir ao Brasil ficavam proibidos de adquirir terras antes de três anos após a chegada. Em resumo, os grandes fazendeiros queriam atrair imigrantes para começar a substituir a mão-de-obra escrava, tratando de evitar que logo eles se convertessem em proprietários”. A Lei forçava o trabalhador imigrante a trabalhar em um latifúndio. Roberson de Oliveira (2002), professor e escritor, comenta que essa Lei reafirmou o poder da grande propriedade, situação que permanece até hoje na estrutura agrária brasileira.

Portanto, a evolução social no Brasil foi embasada no desrespeito à cidadania. Os conflitos da terra na atualidade traduzem a vivência histórica em que grande parte da população esteve e está submissa. A reação dos indivíduos que estão realmente sem um pedaço de terra é natural porque estão vivendo à margem da sociedade. Acreditamos que a transformação social só ocorrerá se governo e latifundiários despertarem para a verdade de que a terra é um bem sagrado e coletivo. Aprendamos com os índios o respeito a esta prática.

Jorge Antônio de Queiroz e Silva

é professor, historiador. Membro do Instituto Histórico e Geográfico do Paraná.E-mail:
queirozhistoria@terra.com.br

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