Onde a aventura conserva os cascos

A última edição da revista de cultura Coyote (número 9, Coyote Edições, outono 2004, 54 páginas) dedica dez páginas com entrevista e poemas ao poeta surrealista brasileiro Roberto Piva, que vive em São Paulo. Só para encurtar a conversa: Piva é autor de Paranóia, publicado em 1963, com fotos de Wesley Duke Lee. O livro é uma visão alucinada da cidade de São Paulo. Com ele, Piva entrou em La Brèche, revista dirigida por André Breton, o principal pensador do surrealismo, do começo ao fim. Se o surrealismo não teve, Breton, pelo menos, morreu em 1966.

A resenha de La Brèche considera Piva uma espécie de descendente louco de Lautréamont e Freud. E com o livro o poeta virou verbete no Dictionnaire général du surréalisme. Resumindo, Piva é o grande poeta surrealista do Brasil. O irônico é que, talvez, seja o único, porque não há outro, pelo menos com a mesma envergadura. O grandioso é que, único, conseguiu ser uma multidão. A multidão de um só. O que faz de Piva um acontecimento.

O surrealismo é um dos principais movimentos culturais dos últimos cem anos, isto é carta batida. Mas no Brasil não encontrou ressonância produtiva, apenas contemplativa. Talvez pelo fato de o Brasil ser um país surrealista e não precisar de nenhum movimento para evidenciar suas bizarrices. Mas o certo é que além de Piva na poesia e Maria Martins na escultura (esta ganhou mais evidência por ser amante de Marcel Duchamp, que pelas refinadas esculturas que deixou, um trabalho que há pouco passou a merecer reconhecimento internacional), o surrealismo encontrou apenas simpatizantes, como Tarsila do Amaral e Ismael Nery, que deixaram em suas obras a influência do movimento.

Mas quando Piva escreveu Paranóia, o surrealismo já não era novidade, há muito tempo. O certo é que já tinha transformado em vítimas alguns de seus principais ícones, coisa muito comum no clube de André Breton. No entanto, apesar de tudo, mantinha-se no topo e pulsando, ao contrário de outros movimentos contemporâneos. Entre todos, o surrealismo foi o mais duradouro e gozou de grande popularidade, seja pelos excessos de seus integrantes, seja pelas imagens fantásticas que produziu. E, assim, novas levas de surrealistas substituíam as baixas e revigoravam o movimento. Piva foi um deles.

Ainda assim, tudo isto não serviu para fazer de Roberto Piva uma unanimidade. Talvez, pelo tipo marginal de poeta que escolheu para si. Ao contrário de muitos surrealistas, ele transitou pelo mundo subterrâneo das substâncias alucinógenas e da sexualidade, entrou por conta própria em um underground particular, em uma espécie de limbo permanente, e dali, foi mal assimilado, mal-digerido e quase sempre ignorado.

O paraíso de Piva foi o transe e o inferno o submundo urbano de São Paulo. Ou vice-versa. As experiências onírica e a marginal se completaram na mesma jornada. O poeta definiu a si e à sua poesia como uma permanente insurreição contra todas as ordens, uma sensibilidade antiautoritária sujeita a prisões, embalos, desemprego permanente, epifanias, cogumelos sagrados, delírios e muito mais. A vida de Piva parece dizer que é fácil gostar do surrealismo, mas não simples ser surrealista. Talvez pelo fato dele ter sido mais que um surrealista.

O que faz de Piva algo mais que o profeta brasileiro de um movimento internacional é o fato dele ser original, não ficar na assimilação de uma receita européia de surrealismo e optar em dar um encardido e quase insuportável verniz tupiniquim. Enfiou no mesmo balaio, Dionísio e macumba, xamanismo e ocultismo, candomblé e o diabo a quatro. Ficou difícil suportar o universo alucinante de Piva. E se ele é único, tem a força de uma multidão. Justamente a multidão dos que deliram e pulsam nos becos sem saída deste Brasil afora nos terreiros de macumba e outras transas espirituais.

Eu presumo que Piva esteja acima do rótulo surrealista. Ele segue as pegadas dos poetas que se desgrudam das escolas para ficar acima delas. O seu legado são seus poemas, com imagens fortes e alucinantes, que podem se encaixar nos anseios dos mais radicais surrealistas, por revelarem a dissolução da lógica, do realismo e da razão. Mas há mais que isso, há nos poemas a força dos bardos da raça, que todas as tem. E é assim que pontifica em “Ritual dos quatro ventos e dos quatro gaviões” em que diz: “Ali onde o gavião do norte resplandece/Sua sombra/Ali onde a aventura conserva os cascos/Do vodu da aurora/Ali onde o arco-iris da linguagem está/Carregado de vinho subterrâneo/Ali onde os orixás dançam na velocidade dos puros vegetais/Revoada das pedras do rio/Olhos no circuito da Ursa Maior/Na investida louca”. Esta aventura poética é a que, afinal, restará para sempre de Roberto Piva.

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