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Obra reúne artigos que revelam a carreira intelectual de Silviano Santiago

Silviano Santiago gosta de desafios intelectuais – um dos mais importantes críticos literários do Brasil, ele (que também é um premiado escritor) ganhou projeção ao longo dos anos por seu incansável interesse em investir em territórios inexplorados e, principalmente, por corrigir seu rumo se necessário e até em se desmentir.

Com seis décadas de uma carreira intelectual diversificada e múltipla, o crítico tem parte significativa de sua obra ensaística agora reunida no volume 35 Ensaios de Silviano Santiago (Companhia das Letras), com organização de Ítalo Moriconi. “A obra ensaística de Silviano dialoga com uma família de que fazem parte nomes como Joaquim Nabuco, Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Antonio Candido, Caio Prado Jr., Celso Furtado, Raymundo Faoro, entre tantos outros”, observa Moriconi, no prefácio.

De fato, os novos rumos da cultura e a política da globalização nunca escaparam ao olhar atento do escritor e ensaísta, que se debruçou em questões sociais e também na forma como a crítica literária é exercida na imprensa. Autor de obras referenciais, como Uma Literatura nos Trópicos (1978) e Cosmopolitismo do Pobre (2005), Silviano, em conversa com o Estado, faz uma relação entre dois clássicos, Os Sertões, de Euclides da Cunha, e Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa.

Entrevista

Silviano Santiago respondeu, por e-mail, às seguintes questões do ‘Estado’.

O senhor já disse que o ensaio tem a ver com a tentativa, com a experiência e com a audácia de trilhar caminhos desconhecidos.

Perdoe a insistência no tom subjetivo. Tenho formação universitária, escrevi e defendi tese de doutorado, fui professor por 40 anos, orientei umas 50 teses, mas sou também escritor. Desde logo, julguei o ensaio mais harmonizável com a carreira de escritor. Sim, ensaio é experimento, disse-o Theodor Adorno, e o repeti. Numa tese, você esmiúça uma obra, a de Carlos Drummond, por exemplo. É trabalho de meia-vida, um catatau de 400 páginas. Num ensaio, 20 páginas, você elege o objeto de estudo, centraliza o foco da atenção e da intenção em detalhe a ser destacado e examinado à luz de microscópio.

Como assim?

Exemplifico o momento-chave da opção. Em meados dos anos 1960, já conhecia bem a poesia de Drummond, mas a lia com a ajuda dos manifestos de vanguarda. De repente, topo com o poema A Máquina do Mundo, no livro Claro Enigma. Puro Camões e Os Lusíadas. Isso não acontece num poeta modernista! Aconteceu. Insanamente, dedico-me a questões paralelas a Drummond. Escrevo ensaio e o publico. Apresenta leitura original do poema de Drummond, mas fala também do papel da tradição na vanguarda modernista, das relações ditas como nulas entre os modernistas brasileiros e a literatura portuguesa clássica, da necessidade de se estudar a literatura nacional da perspectiva comparada, e assim por diante. O poeta não gostou do ensaio e me enviou um poema bem irônico (incluiu-o nas Obras Completas). Em nada recomendável na época, o experimento atingiu a consciente inconsciência do modernista e o nervo do poema.

No ensaio Retórica da Verossimilhança, o senhor afirma, acerca dos descaminhos que encontrava na crítica machadiana, que Machado é essencialmente um romancista “ético”.

Narrador e personagens do romance machadiano não requerem a cumplicidade fraterna do leitor. Nenhuma empatia. Eis a grande originalidade e sua miséria em terra e em época de leitores apressados e altissonantes. O romance machadiano despreza a cumplicidade do leitor de calças curtas; requer seu espírito crítico. Retomando Leonardo da Vinci, o romance para ele “é cosa mentale”, que se oferece ao leitor como objeto matreiro e sedutor, bem no ponto para ser servido à reflexão. Ao contrário do mestre José de Alencar que, como bom nacionalista, se dedicou a pintar os heróis da brava gente brasileira, Machado é um autor pós-épico.

Como assim?

Seus personagens são sub-heróis. Não são escritos só com a memória recente da independência. São escritos com “toda a memória do mundo”, para retomar o título do documentário de Alain Resnais sobre a Biblioteca Nacional. Pós-dramático, o autor não chega a endossar os valores do Iluminismo, à diferença dos companheiros Aluísio Azevedo e Lima Barreto. Machado é tão moderno quanto Franz Kafka, Samuel Beckett ou Jorge Luis Borges. É o romancista da voz cansada, íntima e percuciente. Trêfegos, falastrões e dissimulados, seus personagens escondem à flor da pele as imperfeições da alma. Em Machado, a estética se alia à ética. Exige seus princípios no ato de leitura. Se não há heróis, tampouco há verdade escancarada. Ou melhor, a verdade só se escancara na dimensão da leitura. Em Dom Casmurro, escancara-se a verossimilhança do adultério feminino para que o leitor chegue à verdade do ciúme masculino, possessivo. Se o leitor se encantar com a verossimilhança, tropeça, cai no chão e é devorado pela esfinge.

Uma das principais funções da crítica hoje seria a intermediação entre o leitor e a obra de arte de difícil compreensão?

A questão da domesticação é dependente da boa intenção do crítico. Ele já tem um repertório de leituras e, no diálogo com o leitor, julga necessário lhe oferecer como intermediário uma segunda obra que o ajudará na compreensão da primeira. Compara a obra que apresenta certa estranheza à obra já conhecida e assimilada. As boas intenções da intermediação podem pavimentar a desorientação maior do leitor.

Como assim?

Uma obra de arte, se comparada a outra, ajuda (facilita a leitura da estranheza) e não ajuda (embaralha a compreensão justa da estranheza). O problema está menos na ajuda duma obra para a leitura de outra do que no protocolo de leitura exigido por uma obra e pela outra.

Que tipo de problema provoca?

Abordar o Grande Sertão: Veredas, apoiando-se em Os Sertões, de Euclides da Cunha, ajuda o leitor, mas embaralha a compreensão dos dois. São duas obras admiráveis e afins, mas são díspares na leitura. O épico de Euclides representa um acontecimento histórico que se passa em região precisa. É simbólico da passagem da monarquia à República e apresenta um trabalho com personagens que levam os nomes de batismo. Nação em tumulto, revisão das instituições nacionais (o Exército), revolta do atraso à modernização, etc., servem de referência clara e necessária na construção da trama. Os Sertões se enquadra no gênero romance histórico. Já Grande Sertão é romance de caráter alegórico. Por meio de alegorias, fala duma nação de gosto desenvolvimentista que acaba por ser uma das mais injustas do planeta. No presente, passado e futuro, a ostentação convive com a miséria social e econômica. Pensem: a abertura da Avenida Central, hoje Rio Branco, é causa da invenção da favela carioca. Hoje, a Barra da Tijuca da Olimpíada convive com o morro do Alemão. Seus personagens vivem, portanto, num enclave perdido e feroz e não se expressam como “vidas secas”, afônicas. Como referência geográfica, o romance de Rosa só tem a proximidade de Brasília, que o nega, e seu estilo tem como modelo a estética do “menos que é mais”, que ele nega. Não é romance moderno, é nosso contemporâneo. Sob o efeito das luzes do planalto central, quer enxergar as trevas da nacionalidade. Se adubado pela leitura de Os Sertões, o leitor se perderá ao embrenhar na selva selvaggia criada de maneira intempestiva por Guimarães Rosa.

35 ENSAIOS
Autor: Silviano Santiago
Org.: Ítalo Moriconi
Editora: Companhia das Letras
(640 págs.,R$ 94,90 papel, R$ 39,90 e-book)

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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