O vale de sonhos dos tropeiros

“Desde criança, aos 8 anos de idade, eu já tropeava acompanhando meu pai por este Brasil afora. (…) Há mais ou menos três meses estamos viajando com a tropa. Noites mal dormidas, passadas ao rés do chão… estou muito, muito cansado… Saímos de Minas, passamos por Sorocaba, onde fizemos as trocas de mulas e os negócios na feira lá existente. (…)

“Já estamos no Sul da 5.ª Comarca… As matas nativas têm pinheiros grandes, árvores frondosas, soberbas… a grama é verdinha, fica fazendo um jeito de tapete…

“Entardece… O sol, de um vermelho brilhante, com seus raios dourados já se esconde pelas matas. Os pássaros cantam seus últimos gorgeios, e já nos aproximamos de um pequeno povoado, a Freguesia de Santo Antônio, antes conhecida como Capão Alto, onde faremos uma parada. Aqui neste lugar, se agrupam tropeiros de várias partes do país, trazendo notícias, contando causos, cantando as modas, aproveitando para fazer negócios lucrativos. (…)

“Eu começo a imaginar que aqui, o lugar da nossa pousada, bem que poderia crescer… termais moradores… se tornar uma vila. Começo a sonhar em parar um dia… fixar-me em algum lugar, criar raízes… (…) Ainda sou jovem e meu futuro depende dessa minha lida de tropeiro… Mas sei, com certeza, que se isso acontecer… será aqui! Neste vale, onde passo as horas mais felizes de minha vida”.

As anotações são de Domingos Pereira Porto, tropeiro, descendente de portugueses, 16 anos, reproduzidas por sua tetra-tetraneta Albertina Mello Burda, a Betty (ele era “pai do avô do meu bisavô”). Domingos nasceu em Diamantina, nas Minas Gerais. Era o mais alto dos filhos de Manuel e Donana, moreno, olhos castanhos esverdeados, testa alta e traços quase definidos, tirando o nariz quebrado, “herança do coice de uma mula que, depois deste acontecido, perdeu a estima do meu avô”.

Betty Burda reconstitui a história da fundação da cidade da Lapa através da história romanceada de seus ancestrais. “Sou Joanna, Sou Josefa, Sou Rita” é um belo trabalho, simples como resultado editorial, mas notável como resgate memorialístico e pesquisa. Além do que, a autora revela-se uma historiadora “de mão-cheia”, como se diria nos bons tempos da Velha Lapa dos nossos amores.

Baú de memória

Quando trabalhava na Prefeitura Municipal da Lapa, sempre que tinha um tempinho livre, Betty Burda “ia bisbilhotar o que tinha dentro de uma caixa grande de madeira”. Era um velho baú, cheio de livros, papéis amarelecidos, blocos, tudo misturado.

? Eu comecei a organizar e encapar os livros, selecionar assuntos – conta ela. E qual não foi a minha surpresa, ao encontrar a vida da cidade onde moro, registrada em pastas e livros.

O encanto e o interesse de Betty aumentou consideravelmente quando sentiu quão grande era o amor e a preocupação que aqueles que viveram em outro século tinham pela “nossa Lapa”. Eram projetos de construção, melhorias, cuidados com a então Vila Nova do Príncipe.

Viagem no tempo

“Será que consigo escrever um livro?” – indagou-se, com ansiedade. Conseguiu. Atravessou bravamente a parede divisória de dois séculos, transitou por “cinco gerações de lapeanos e lapianistas” e presenteou-nos com um livro que, como bem registra o ex-prefeito Sérgio Augusto Leoni, que assina o prefácio, “surpreende pela quantidade e pela qualidade de detalhes, efemérides, fatos, feitos e personagens, enriquecendo o cabedal de conhecimentos sobre o rincão em que nascemos”.

Ao manusear o material encontrado, Betty Burda confessa ter visto as mulheres com seus vestidos compridos, “farfalhando sedas e setins”. Viu, também, “suas jóias de pedras preciosas, seus perfumes de rosas e jasmim, feitos por elas mesmas”. Viu, ainda, “os escravos que aqui deixaram o seu suor” e viu “os cães, porcos e cabras [no meio das ruas e da velha Praça das Laranjeiras, hoje General Carneiro], infernizando os vereadores, que tinham que tomar providências”.

? Eu sou Joana, sou Jesefa, sou Rita, porque sou descendente direta destas personagens que viveram naquela época – explica a autora. Sou pedaço desta história e quero fazer uma homenagem àqueles que mais se destacaram nos documentos lidos por mim.

E arramata, ciente da missão cumprida: “Hoje, neste século, aliás, novo milênio, também existem homens e mulheres dispostos a fazer da Lapa a melhor, a mais bonita, a mais próspera [das cidades]. E desses cidadãos dá para escrever outra história”.

“Sou Joanna, Sou Josefa, Sou Rita”, lançado em junho de 2003, com o apoio da Prefeitura Municipal da Lapa, traz na capa o belo trio de descendentes de Betty Burda: a filha Nádia e as netas Giovana e Clarissa.

Aí está um bom início para uma nova história, Betí. (CHC)

O Cerco da Lapa

(POR QUEM ESTEVE LÁ)

“Tropas federalistas começam a penetrar no município, atravessando o Rio da Várzea. Pretendem chegar à capital da República para depor Floriano Peixoto. (…) Começa o espocar de tiros que daí para diante farão eco na Lapa. O general Antônio Gomes Carneiro pede que todos se recolham em suas moradias e não saiam até segunda ordem. Nossa cidade de repente se torna um campo de guerra.

“O sino da Matriz bate sem cessar, avisando da gravidade da situação.

“Ontem, vi passar um contingente para uma batalha. Momentos depois, só um terço voltou e todos feridos. Nunca vou esquecer essa cena.

“O general Carneiro incita seus comandados: “Resistamos, camaradas, resistamos, porque nós, militares, não temos direitos, só deveres a cumprir: queimar o último cartucho e depois morrer!

“Batalha acirrada, só se ouve o retumbar dos canhões…

“Ferido no tórax por projétil federalista, morre Leblon Regis. No mesmo dia, é ferido mortalmente o alferes Francisco Fidêncio Guimarães. Clemente Argolo também é atingido. Morre o cel. José Amintas de Barros. O cel. Dulcídio Pereira, de tocaia no telhado da igreja, acertou muitas sentinelas, mas é baleado e morre as onze da manhã.

“Um grande tiroteio. Nosso medo é grande, parece que tudo desmorona com o ruído ensurdecedor.

“Vem a pior notícia: o gen. Carneiro é baleado no fígado, quando procurava amparar o ten. José Henrique. É atingido mortalmente, aqui perto da farmácia de meu irmão Olímpio e carregado para a casa de Pedro Fortunado de Souza Magalhães. Correm avisar o Dr. João Cândido Ferreira, que se desespera. Armado de seu guarda-chuva, o doutor sai em passadas largas e nervosas. Entra na sala onde está o ferido, deitado em uma marquesa, com os olhos já enevoados, com a palidez cadavérica. Dr. João Cândido o examina, mas nada mais resta a fazer, O tiro foi mortal. Às seis e meia da tarde, ele falece. Cessa o tiroteio, o silêncio é total.

“Nossas casas, tão lindas, caídas inteiras no chão. Outras, cheias de buracos. Não há onde não haja um furo de tiro. Tudo é silêncio e desolação. As pessoas estão tristes, desanimadas. Temos que nos dar as mãos e, como sempre foi aqui, unidos venceremos. Vamos erguer tudo de novo, consertar as casas, plantar mais flores. E pedir a Santo Antônio a sua bênção e proteção”.

(A narrativa é de Rita Westphalen Porto, bisavó de Betty Burda, poucos dias antes de falecer, vítima da epidemia de tifo que tomou conta da Lapa logo depois do Cerco. Betty ouviu-a da avós, dona Elvirinha, filha de Rita.)

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