O músico que toca notícia

Num ano pródigo em acontecimentos marcantes, como a invasão do Iraque por George W. Bush, o sempre irrequieto Tom Zé resolveu prestar uma “homenagem” à mídia em Imprensa Cantada 2003 (Trama, R$ 26 em média), com 14 faixas compostas em diversas épocas, a maioria inédita e com ligações diretas ou indiretas com notícias publicadas nos jornais.

Uma delas, a faixa 2, você deve conhecer: Companheiro Bush, um foxtrote delicioso composto para um ato público pela paz organizado em São Paulo, em abril, e já amplamente executado em programas de televisão. Nela, Tom Zé usa o tratamento carinhoso dedicado por Lula ao presidente americano para embalar uma letra cáustica: “…Onde haverá recurso / Para dar um bom repuxo / No companheiro Bush / Quem arranja um alicate / Que acerte aquela fase / Ou corrija aquele fuso…”.

A anterior, Dona Divergência, composta por Felisberto Martins e Lupicínio Rodrigues na década de 40, originalmente uma associação da Segunda Guerra Mundial aos desentendimentos amorosos, ganha novo sentido nos tempos atuais. Ao vivo e a capela, Tom Zé canta “Oh Deus, que tens poderes sobre a Terra / Deves dar fim a esta guerra / E aos desgostos que ela traz”. Ainda no terreno da política internacional, está Urgente pela Paz, balada elegante composta logo antes da guerra no Iraque, pontuada pelo refrão “Pela paz é urgente, é urjá”.

Inspirado pela guerra de informações e pela censura à imprensa no conflito, o tropicalista baiano resgatou uma música composta durante o regime militar, jamais gravada: Requerimento à Censura, como o nome diz, musica o documento exigido pela Divisão de Censura da Polícia Federal para a análise das obras. E aproveitou para incluir uma canção mais recente, Sem Saia, sem Cera, Censura, que teve origem na recepção do CD anterior, “veladamente censurado pela hipocrisia da classe média”.

Das manchetes de jornais também veio a inspiração para a bossa clássica Vaia de Bêbado não Vale, que remete ao episódio da vaia recebida por João Gilberto na inauguração do Credicard Hall, em São Paulo, em setembro de 1999. “Eu estava naquele show, e não dei tanta importância”, contou Tom Zé a O Estado. Mas não foi isso que o levou a compor e gravar a música: “Depois daquela confusão toda, ele voltou para cantar no dia seguinte, pois caso contrário não receberia. Como ele estava recém-casado e a mulher era uma fera, ele voltou”, revela Tom. “Achei aquilo muito chato, uma pessoa como o João ser obrigado a cantar por uns 80 mil cruzeiros… aí tive a idéia de fazer.” O disco traz duas versões, a original e uma instrumental.

Desafio

Desafiado por jornalistas esportivos para compor uma música inspirada na Fórmula 1, durante a cobertura do GP Brasil deste ano, Tom Zé saiu-se com a divertida Interlagos F1, literalmente uma corrida cantada, com toda a tensão inerente ao esporte. De volta ao entretenimento, Tom Zé recuperou um xote composto depois de ter sido convidado para o Rock in Rio, Desen-rock-se, em que ensina que “para desintoxicar de tanto rock só um xote chamegá”. “Na época eu vi a propaganda – “não quantas mil horas de rock”. -, e pensei: isso ainda vai causar uma baita intoxicação”, relembra.

Outro bom momento é a suntuosa São São Paulo, regravada a pedido da produção da novela Vila Madalena, da Rede Globo. Mas o gênio criativo de Tom Zé aparece mesmo com toda a força na impagável 1,2, Identificação, feita a partir dos números dos documentos do “cidadão” Antônio José Martins. A faixa remete aos melhores momentos de Raul Seixas, recheada de bom humor. E nesse quesito a ovelha negra da Tropicália é insuperável: “É bom não se levar muito a sério, senão a gente fica velho mais depressa. Com humor a gente consegue botar um freio na Terra, e ela faz a volta em torno do Sol mais lentamente”. Taí a fonte da juventude de Tom Zé.

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